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Pavilhão Sámi na Bienal de Veneza [Foto: Panagiotis Panagopoulos | Reprodução IG @panagiotispanagopoulos]
Postado em 20/04/2022 - 5:01
“Não compre nossa terra, compre nossa arte”
Pavilhão Sámi é um levante de artistas indígenas na Bienal de Veneza
Juliana Monachesi (tradução)

A jornalista de arte baseada em Londres Anna Souter viajou até SÁPMI, a região cultural Sámi, localizada no norte da Noruega, Suécia e Finlândia, para conhecer os três artistas indígenas indicados para a “representação nacional” do Pavilhão Nórdico na Bienal de Veneza deste ano, Pauliina Feodoroff, Máret Ánne Sara e Anders Sunna. Reproduzimos a seguir a sua história, publicada esta semana no portal da Hyperallergic, plataforma nova-iorquina de notícias e crítica de arte.

 

 

A artista Sámi Pauliina Feodoroff diz que “ser indígena é ser site-specific”. Durante séculos, governos coloniais representaram as paisagens site-specific indígenas do Ártico europeu deliberadamente como desertos vazios. Na realidade, estas são as terras ancestrais do povo Sámi. Longe de serem vazios, são locais ecologicamente diversos de cultura, cuidado e esforço coletivo.

Na Bienal de Veneza deste ano, o Pavilhão Nórdico se transforma pela primeira vez no Pavilhão Sámi. O projeto mina a estrutura nacionalista por trás da Bienal, reconhecendo a soberania e a coesão cultural de Sápmi, a região cultural Sámi, que abrange grande parte das áreas mais ao norte da Noruega, Suécia e Finlândia, bem como parte da Rússia. Os três artistas participantes – Pauliina Feodoroff, Máret Ánne Sara e Anders Sunna – chamam a atenção para a opressão colonial e a discriminação contínuas experimentadas pelos indígenas Sámi sob governos locais e nacionais em toda a região nórdica.

FLORESTAS ANCESTRAIS
Os membros da família de Feodoroff são pastores de renas Skolt Sámi, originalmente da parte de Sápmi dentro da fronteira russa. Eles foram empurrados para a Finlândia após a Segunda Guerra Mundial, em uma área com reputação de tóxica, devastada pela mineração e radiação de Chernobyl. O trabalho de Feodoroff para o Pavilhão Sámi combina performance e instalações de vídeo para explorar formas não-coloniais de expressão física, enfatizando a estreita relação entre o corpo e a paisagem na cultura Sámi.

Feodoroff não tem ateliê; em vez disso, ela vê as paisagens com as quais trabalha como seu estúdio ampliado. Sua prática criativa é indissociável de sua atuação como defensora da terra. Ela explica que o governo finlandês trata a terra ancestral Sámi como um “recurso para explorar e vender pedaço por pedaço para qualquer mercado que precise”. Em particular, ela lamenta e luta contra o corte de florestas antigas e de crescimento lento por uma das principais economias de exportação da Finlândia: papel higiênico. O “bathos” [aqui a autora faz um jogo de palavras com páthos; em grego, bathos significa profundidade] não passa despercebido por Feodoroff e outros pastores de renas Sámi locais, que são contornados pela transação, ganhando nada além de uma paisagem degradada e taxas de sobrevivência mais baixas para suas renas.

Para proteger e restaurar as florestas antigas remanescentes, Feodoroff está tentando usar o mercado de arte para comprar de volta as terras, para serem administradas coletivamente pelo povo Sámi. A aquisição de uma das suas obras enquadra-se num contrato por meio do qual o colecionador adquire o direito de visitar um terreno em Sápmi; em troca, ela se compromete a proteger aquela terra. A mensagem da artista é: “Não compre nossa terra, compre nossa arte”.

Instalação de Máret Ánne Sara no Pavilhão Sámi na Bienal de Veneza 2022

ESTÔMAGO COMO METÁFORA
Em 2015, o governo norueguês introduziu cotas de abate em massa de renas para os pastores Sámi, atingindo particularmente os pastores mais jovens, como o irmão da artista Máret Ánne Sara. Ao longo de um processo judicial demorado e caro, Sara apoiou o recurso de seu irmão contra a decisão, mostrando solidariedade e resistência por meio de seu projeto artístico Pile o’Sápmi (2016-em andamento). Em 2016, Sara empilhou 200 cabeças de rena do lado de fora do Tribunal Distrital de Inner Finnmark e coroou a pilha com uma bandeira norueguesa. A obra se refere à política dos colonos brancos do século 19 de controlar a população indígena do Canadá, matando milhões de búfalos e empilhando seus ossos em pilhas gigantes. “Meu trabalho pretende ser um julgamento artístico público”, diz Sara. Ela quer responsabilizar o governo norueguês pela repetição de eventos coloniais devastadores em uma nação que se orgulha de seu histórico de democracia e direitos humanos.

O trabalho de Sara enfatiza que o pastoreio de renas está no coração tanto da cultura Sámi quanto das complexas ecologias de Sápmi. Sua instalação para o Pavilhão Sámi incorpora bezerros de rena mortos que foram preservados como símbolos agridoces de perda e esperança, bem como estômagos de rena secos e inflados.Sara está interessada no estômago como um local físico e psíquico para processar estímulos e emoções ambientais, subvertendo a divisão cartesiana entre mente e corpo. O trabalho ataca alguns dos binarismos problemáticos da cultura ocidental, continuando a destacar a gestão ambiental colonial e em escala industrial que está sendo praticada pelo governo norueguês.

PASTOREIO DE GUERRILHA
A pintura e as instalações sonoras de Anders Sunna falam diretamente de sua própria história. “Minhas pinturas contam o que aconteceu com a minha família”, diz. “Hoje nossa família não tem nenhum direito, perdemos tudo.” Localizada no lado sueco de Sápmi, a família de Sunna teve seu direito ancestral de pastorear renas negado por causa dos interesses conflitantes dos proprietários de terra suecos locais, bem como pelo desinteresse, racismo e corrupção dos sistemas governamentais e judiciais. A família de Sunna pratica o que ele descreve como “pastoreio de renas de guerrilha” há 50 anos.

As pinturas de Sunna tomam emprestados motivos de movimentos de protesto internacionais, cenas noticiosas de manifestações e sua origem artística como grafiteiro. Sua mudança para o mundo das belas artes está ajudando a levar a história de sua família para um público internacional. Para a Bienal de Veneza de 2022, criou cinco pinturas que retratam episódios das últimas cinco décadas das lutas da família Sunna. Uma sexta pintura foi queimada em um ato ritual; apenas seus restos serão apresentados. A obra reconhece um futuro potencial de morte para os Sámi, mas mantém viva a esperança, que pode renascer como uma fênix das cinzas. Sunna conta histórias de opressão e até desespero diante dos implacáveis ​​ataques aos direitos de sua família, mas também confia em um futuro melhor para a próxima geração.

ARTE COMO POLÍTICA
Antes de visitar Sápmi para conhecer os artistas do Pavilhão Sámi em fevereiro de 2022, me sentia desiludida com o poder do mundo da arte de promover mudanças; apesar de inúmeras obras de arte que conscientizam sobre o colapso do clima, por exemplo, a sociedade fracassou em fazer mudanças significativas. Mas, em Sápmi, conheci pessoas que acreditam na capacidade da arte – e da Bienal de Veneza – de fazer a diferença. Muitos artistas, ativistas e políticos Sámi argumentam que uma maior visibilidade internacional levará os governos nórdicos a mudar suas políticas discriminatórias sob pressões internas e externas.

As histórias contadas no Pavilhão Sámi raramente foram apresentadas em um cenário internacional; e embora muitas vezes profundamente pessoais, elas falam de questões que afetam a todos nós. O Ártico está aquecendo quatro vezes mais rápido que o resto do mundo; é um teste decisivo para o nosso futuro ambiental. O conhecimento indígena e a gestão indígena da terra podem nos levar a um futuro ecológico mais seguro; é, portanto, profundamente injusto que o povo Sámi esteja na linha de frente do colapso climático, ao mesmo tempo em que sofre injustiça racial e discriminação. Talvez, ao “preencher a lacuna de informação e reivindicar a realidade”, como diz Máret Ánne Sara, a Bienal possa realmente criar mudanças e levar essas pessoas e lugares do Ártico a serem tratados com o respeito que merecem.

LINK: https://hyperallergic.com/717120/venice-biennale-sami-pavilion-is-a-coup-for-indigenous-artists/