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Postado em 27/02/2013 - 8:24
Nicolas Bourriaud: Para onde vamos?
Paula Alzugaray e Giselle Beiguelman

Desenvolver uma abordagem dinâmica das formas artísticas é o novo desafio para a crítica, afirma o curador francês que se notabilizou por teorias como a estética relacional e o altermoderno

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Legenda: Bourriaud em Oslo em 2011 (Foto: Mariann Enge)

Nicolas Bourriaud, 47 anos, personifica bem o perfil hiperativo do profissional de arte contemporânea. É curador, ensaísta, crítico de arte, foi diretor de instituição de arte (Palais de Tokyo, Paris, 1999-2006), criou e dirigiu revistas especializadas e hoje é diretor da Escola de Belas Artes de Paris. Só não foi artista e esse aspecto específico causou certo desconforto no meio acadêmico francês, ao ser nomeado para um cargo que, normalmente, é ocupado por artistas plásticos.

Diferentemente de seus pares, Bourriaud é autor de ensaios que rapidamente ganharam a dimensão de teorias de arte e atingiram notoriedade mundial, sendo traduzidos para 15 línguas. Seu primeiro trabalho, Estética Relacional (1998), teoriza as práticas artísticas que eclodiram no fim dos anos 1990 com artistas como Philippe Parreno, Dominique Gonzalez-Foerster ou Rirkrit Tiravanija.

Em 2009, sua curadoria da Trienal do museu Tate Britain, em Londres, tornou-se a plataforma de lançamento para uma teoria estética, o altermoderno, um sistema de leitura crítica articulado com teorias econômicas e geopolíticas, como a alterglobalização. Nesse entretempo, viriam ainda os conceitos de pós-produção e radicante. “Todos os meus livros tentam nomear algumas realidades específicas que foram preguiçosamente descritas como ‘pós-modernas’”, esclarece, em entrevista a seLecT.

E agora, para onde nos levará Bourriaud? O curador está implementando na Escola de Belas Artes um programa para o espaço expositivo que vai reabrir em abril com um novo nome: Palais des Beaux-Arts. A primeira exposição individual deve levantar polêmica. Será dedicada ao brasileiro Glauco Rodrigues, cujo trabalho o francês descobriu em sua viagem ao Rio.

O pós-modernismo rompe com a dinâmica do novo e com o papel histórico do modernismo de superar o passado. Mas o pós-modernismo também foi superado, afinal? O que foi o pós-moderno: um período histórico, um conceito ou um estilo?

Acho que foi as três coisas. Historicamente falando, o termo “pós-moderno” apareceu na época da crise do petróleo de 1973, um evento que levou o mundo a perceber que nossas reservas de energia eram limitadas – ou seja, colocou um fim à ideia de superabundância, de progresso infinito, da cultura como projeção para o futuro… A crise do petróleo representa para mim o “momento primordial” do pós-modernismo. Desde então, a economia foi desligada dos recursos naturais e reorientada para a “financeirização” imaterial, cujos limites vemos claramente agora, com o colapso parcial do sistema. Enquanto a economia cortava seus laços com a geografia concreta, a cultura se divorciava da história como cenário coerente.

O pós-modernismo foi a história desse desligamento, levando a uma concepção reificada das “origens”. Como conceito, o período pós-moderno foi ativo em nivelar as diversas “versões” de tempo e espaço em todo o planeta, ao promover a sua desocidentalização, o que foi um passo importante. Mas a sua grande questão era: “De onde você vem?”, que era a base do seu discurso pós-colonial, essencialista e pós-político. Mas uma nova pergunta surge hoje, novamente de todos os lados: “Para onde vamos?”. E nós sabemos que essa pergunta está ligada à modernidade. O gesto moderno por excelência é o desenraizamento, o êxodo, a caminhada para o futuro. A diferença é que só podemos chegar a esse destino, agora, onde quer que ele seja, pelo vagar. A nova versão da antiga interrogação modernista é agora inseparável do vagar: o modernismo era linear, estamos ligados hoje a figuras complexas, redes, constelações, arquipélagos…

O altermoderno, conceito criado em sua curadoria para a Trienal da Tate Britain, de 2009, foi uma alternativa ao pós-moderno?

O prefixo “pós” está realmente circunscrevendo um vazio teórico, um espaço em branco que parece que temos medo de qualificar. O que significa nos posicionarmos “após” a história, em outras palavras, em seus subúrbios? “Pós” é a pontuação gramatical de um espaço-tempo em branco, o signo de uma não decisão. O artista David Robbins descreve os subúrbios americanos como “árvores-e-trânsito”: não é uma cidade, não é o campo, é uma “pós-cidade”, de alguma forma. Nós poderíamos até comparar o pós-modernismo a uma favela global: tanto além quanto paralelo ao seu contexto, deixada a um estatuto vago, um encontro humano sem orientação ou definição precisas. Esse espírito que eu chamo de “altermoderno” é um passo para incluir a favela dentro da cidade: vamos ousar nomear o nosso próprio período histórico, vamos tentar pensar a sua especificidade e os conceitos que produz, dentro de um contexto histórico mais amplo.

Você construiu o conceito de altermoderno em torno da imagem do arquipélago e de questões relacionadas à alteridade. Qual a aplicação desse conceito hoje? Você continuo trabalhando com ele depois da Trienal?

O modernismo do século 20 foi “continental” em seu princípio, baseado em um esperanto formal, cuja abstração geométrica era o principal componente. Essa grade abstrata foi a chave para a “modernização” do mundo, tornou-se a nossa realidade cotidiana: em sua essência, o capitalismo é abstração. O arquipélago é o padrão privilegiado do altermoderno, porque liga diferentes lugares sem apagar suas singularidades; é baseado em relações, não em padronização. O arquipélago, como a constelação, é uma rede. Desde o livro Radicante (2009), eu tenho trabalhado sobre a oposição entre o altermoderno e a teoria pós-colonial, que está congelada em um sistema binário, acentuando o antagonismo entre “nós” e “eles”, norte e sul, o colonizador e o colonizado. E o pensamento pós-colonial se desenvolve por via da fetichização das origens. Estou chamando a atenção para um relativismo generalizado, não binário: o mundo como um arquipélago socio-cultural, não reduzido à luta entre dois polos.

Como os conceitos de estética relacional, altermoderno, pós-produção e radicante se relacionam entre si e com o pós-moderno?

Todos eles poderiam ser descritos como ferramentas teóricas contra a filosofia das origens, como diferentes tentativas para quebrar as regras metafísicas que encerram a estética em sistemas sem volta: se você se concentrar no “relacional”, a obra de arte nega o artista como sua origem única, trata-se de uma situação compartilhada, que implica o espectador. Vista como “pós-produção”, a obra de arte não é mais uma página em branco preenchida pela inspiração do criador, mas vem de reciclar o já existente. E, sendo “radicante”, significa uma dessacralização total das raízes – você não depende delas, você as cultiva. Não há origens, mas construções, a elaboração de um assunto por meio de um processo errante. Aí vem outro padrão, que é a minha crítica constante ao processo de desumanização, que assume formas múltiplas. Todos os meus livros tendem a abordar os avanços da reificação, e tentam fornecer ferramentas para resistir a ela, dentro da esfera estética. E todos eles tentam, também, nomear algumas realidades específicas que foram preguiçosamente descritas
como “pós-modernas”: o meu esforço consiste em lançá-las para fora de sua órbita e inscrevê-las na paisagem econômica, sociopolítica e tecnológica dos nossos tempos.

Radicante, que você usa para definir a estética da globalização, é um termo importado das ciências botânicas para descrever plantas como a hera, que produzem raízes no processo de seu deslocamento. A botânica também está presente em um dos conceitos fundamentais da filosofia, o rizoma de Deleuze e Guattari. O que a botânica tem a ensinar aos filósofos?

A botânica poderia ser descrita como uma ciência de movimentos, um discurso sobre as formas de vida e seus modos de crescimento. Vista como tal, não está tão longe da arte. Artistas inventam, antes de tudo, trajetórias: produzem caminhos ao longo de signos, objetos ou formas. Como crítico de arte, eu tenho de avaliar a qualidade e a produtividade de uma trajetória: é um estudo de balística. Desenvolver uma abordagem dinâmica das formas artísticas é o novo desafio para a crítica. Não podemos apenas imaginar a arte como um conjunto de objetos estáticos, mas temos de explicitar a dinâmica das obras de arte. Isso é ainda mais importante no contexto atual de superprodução.

Seu livro Pós-Produção (2004) deu contexto crítico a uma modalidade de criação que o mercado de arte resiste a incorporar. Contudo, não entram nessa discussão – nem na sua, nem na do mercado  – projetos de artistas voltados à internet, que operam exatamente nessa direção, por meio de apropriações mash-ups de códigos. Por quê?

Vejo a tecnologia exercendo uma influência indireta sobre a arte: a invenção da fotografia, primeiro, produziu a técnica impressionista da pintura. No seu início, a internet modificou profundamente a consciência dos artistas sobre interação, partilha, relações humanas etc. Agora os tempos estão maduros para produções online que vão além da mistificação tecnológica. E noções como “códigos” ou o movimento “copyleft” são, obviamente, promissoras e estão atualmente conduzindo uma nova geração de artistas.

Você inseriria Lygia Clark e Hélio Oiticica na reflexão sobre a estética relacional?

Claro. Só que eu tinha um fraco conhecimento do seu trabalho quando escrevi o livro, por volta de 1995. Mas acredito que a estética relacional permitiu, ou impulsionou tremendamente, o seu reconhecimento pelo mundo da arte global. Antes eles eram vistos como seguidores do movimento conceitual, e a estética relacional os transformou em pioneiros, que eles merecem totalmente. Pode-se dizer o mesmo sobre Tom Marioni ou Wilson Ian, cujas obras foram revistas por completo desde este novo ângulo.

Você diz que, no mundo globalizado, a dimensão portátil dos dados nacionais tornou-se mais importante do que sua realidade local. Já Bruno Latour afirma que as coisas e seus usos nos conectam mais que as relações de identidade e território. Vocês fazem a mesma leitura do contexto global (ele, do ponto de vista político, você, do estético)?

O trabalho de Bruno Latour me parece epistemológico e não plenamente político. Ele é tão político dentro do seu campo como eu no meu. Mas eu certamente diferiria dele sobre o papel central que ele dá às “coisas”. Sim, elas estão dominando a nossa existência, mas observando essa evolução desde o campo artístico, tenho uma firme posição contra ele, e imploro por uma reinserção do humano onde quer que seja possível. O movimento filosófico chamado “realismo especulativo” toma um caminho semelhante, privilegiando o objeto sobre o ser humano. A Estética Relacional foi um manifesto pelo inter-humano, não pelo velho humanismo; Radicante foi também uma defesa do sujeito – não uma defesa humanista, outra vez –, mas um sujeito com base em trajetórias e diálogos com os solos pelos quais ele passa.

Quem são seus autores favoritos e os teóricos que mais o influenciaram?

É claro que eu tenho uma dívida imensa para com os estruturalistas franceses, de Althusser a Deleuze e Guattari, ou Foucault. Mas Walter Benjamin ou Sigfried Kracauer também me assombraram. E não devo esquecer escritores como Jorge Luis Borges, Victor Segalen ou mesmo Diderot. Entre os historiadores de arte, penso em Linda Nochlin e Kubler George. Mas a minha inspiração vem principalmente dos próprios artistas.

Qual o curador com quem você mais se identifica e a exposição mais marcante na sua formação?

Tentei evitar qualquer tipo de identificação, mas tenho um diálogo sério com Harald Szeemann ou Hulten Pontus. Ambos foram freelance e diretores de instituições, como eu. A exposição, foi certamente a primeira de Yves Klein, no Centre Pompidou, quando eu tinha 17 anos. Realmente abriu minha mente.

Em que conceito ou exposição você está trabalhando atualmente?

Estou implementando na Escola de Belas Artes um novo programa para o espaço expositivo de 1.000 metros quadrados, que vai reabrir em abril com um novo nome, o Palais des Beaux-Arts. Vou propor exposições temáticas três vezes por ano. Todas elas serão constituídas em quatro partes: uma coletiva com artistas contemporâneos, uma individual com um artista da segunda metade do século 20, uma exposição incluindo a coleção do Belas Artes (que contém mais de 450 mil obras de arte), e um pequeno espaço dedicado aos nossos alunos formados. O programa de abertura, Anjo da História, vai abordar o problema da ruína histórica: como os artistas de hoje usam artefatos históricos ou documentos como prova. Hoje, o passado é o último continente a ser explorado: vou focar uma geração de artistas que escavam a história, a fim de produzir efeitos específicos da verdade sobre o nosso presente. Spammers históricos? Por último, mas não menos importante, a exposição individual será dedicada a Glauco Rodrigues, cujo trabalho eu descobri no Rio: ele foi importante na década de 1960 por inventar um tratamento original da história brasileira, misturando o tupi e os conquistadores, re-explorando os contos de colonização com um toque pop britânico. Ele me aparece como um elo perdido e espero que o seu trabalho seja redescoberto por esta exposição.

*Publicado originalmente na edição impressa #9.