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Postado em 23/11/2012 - 4:09
O artista como cão
Juliana Monachesi

Para coletivo canadense General Idea, o poodle é a melhor metáfora do artista contemporâneo. Já Rodrigo Braga se reconhece em um rottweiler e Graziela Kunsch incorpora o vira-lata

General Idea

Legenda: P Is for Poodle (1983), do General Idea (foto: Cortesia do artista AABronson e galeria Esther Schipper, Berlim)

Nos anos 1980, o grupo canadense General Idea elegeu como alter ego um cachorro. O trabalho foi recentemente revisitado em uma mostra retrospectiva itinerante sobre o coletivo, que perdeu dois de seus integrantes, em 1994, para a Aids – a epítome mais funesta do mondo cane contemporâneo. No Brasil, a convite de seLecT, dois artistas falam de trabalhos antigos – e fundantes – em que se autorretrataram como cães: Rodrigo Braga, que participa atualmente da Trigésima Bienal de São Paulo, e Graziela Kunsch, que integrou a 29ª edição da mostra. Ambos recorreram a metáforas caninas para explicitar a condição humana em trabalhos do início de suas trajetórias e demarcaram com essas obras um contundente testemunho sobre a condição do artista na sociedade atual.

Apresentada em Paris e Toronto (até janeiro deste ano), a retrospectiva Haute Culture: General Idea vem lançando luz sobre a importância cultural do grupo, ativo entre 1969 e 1994, formado pelos artistas Felix Partz, Jorge Zontal e AA Bronson (que adotaram esses nomes ao fundarem o coletivo). Importância que não pode ser dissociada da proposta de equivalência entre artista e cão ou, mais precisamente, entre artista e poodle. O grupo defendia que o cãozinho frufru era a metáfora ideal para a situação do artista contemporâneo. Escolhidos pela banalidade e pela arbitrariedade da sofisticação a eles associada, os poodles possuem um ar de importância semelhante ao do artista.

Geid

Obra da série Mondo Cane Kama Sutra (1984), do General Idea (foto: Ilona Ripke / cortesia do artista AABronson e galeria Esther Schipper, Berlim)

A retrospectiva iniciou o percurso no Museu deArte Moderna de Paris em 2011, com curadoria de Frédéric Bonnet, e foi organizada em torno de temas onipresentes na prolífica produção do coletivo: o glamour como ferramenta de criação, cultura de massa e sociedade de consumo, identidade gay, sexo como símbolo de um sistema social a ser subvertido, e a Aids. No cartaz de divulgação da mostra em Paris figurava o famoso retrato, de 1983, dos três artistas do grupo travestidos de poodles.

Inscrito em escudos e brasões, fotografias e instalações, o cachorro comparece também em uma paródia das pinturas-happenings de Yves Klein (Antropometrias), cobertos de tinta azul: a obra Bleu (1984), que se vale de três poodles franceses brancos em tamanho real para espalhar pinceladas azuis formando a letra xis em telas de grandes dimensões. Os poodles foram fabricados por um taxidermista de Berlim de acordo com as especificações do General Idea, mas sem usar animais de verdade.

Intenção antropofágica

Rodrigo

Legenda: Fotografia da série Fantasia de Compensação (2004), de Rodrigo Braga (foto: Cortesia do artista)

O artista Rodrigo Braga, quando sentiu a necessidade de se retratar como cão, escolheu um rottweiler, pela força e agressividade da raça. A obra de 2004 tinha dois objetivos: discutir a potência ficcional das tecnologias de manipulação digital da imagem e formalizar uma semelhança subjetiva que o artista sentiu, na adolescência, com um cão. Em relato sobre o episódio de juventude que o marcou, Braga observa: “Hoje vejo que tive uma identificação imediata com aquele animal. Eu me reconheci nele”. A identificação ocorreu quando se deparou, a caminho da escola, com um cachorro fragilizado e doente na rua e percebeu que precisava de ajuda para enfrentar o pânico que então vivenciava.

Gênese forte para explicar por que surgiria subitamente, anos depois, a “imagem zoomórfica com intenção antropofágica da fusão da minha cabeça com a de um rottweiler”. Ele escreve ainda, em seu relato Dos Bastidores de um Autorretrato (2005), que, “depois de curado, tanto tempo após esse episódio, ainda não me vejo como um rottweiler, mas às vezes acho que precisaria ser…” A série Fantasia de Compensação (2004), que mostra um passo a passo da transformação, com ares científicos, gerou protestos e incompreensão, comprovando a hipótese de Braga sobre a potência da ficção digital. O artista precisou, em 2008, divulgar uma nota esclarecendo que recebeu autorização formal do Centro de Vigilância Ambiental da Prefeitura do Recife para utilizar legal e eticamente o corpo do animal eutanasiado como procedimento-padrão das autoridades sanitárias no controle de zoonoses. Isso em resposta a uma enxurrada de ameaças que recebeu quando a obra foi exposta na feira SP-Arte daquele ano.

Ciclos alterados

Atualmente, enquanto prepara seu retorno ao pavilhão da Bienal, agora para participar da Trigésima Bienal de São Paulo, Braga avalia os desdobramentos de Fantasia de Compensação como uma experiência legítima de espelhamento. “A arte espelha o mundo, mas devolve um espelho também: um rebatimento que mostra o que as pessoas são; e as pessoas são tão cruéis quanto a arte possa parecer”, afirma. “Acho bom que a arte ainda consiga mexer com o público. Essa obra mexe com as fantasias das pessoas. E talvez toda a minha produção faça isso em alguma medida, porque lido sempre com coisas arquetípicas”, explica.

Nas séries que se seguiram à obra zoomórfica, como Comunhão (2006), Leito (2008) e Desejo Eremita (2009), Braga se valeu de outros bichos para simbolizar o contato com os elementos primordiais que povoam seu trabalho. “O artista não é como Joseph Beuys, que ensina arte a uma lebre morta”, escreve o crítico e curador Paulo Herkenhoff no ensaio do livro Ciclos Alterados, monografia sobre a obra de Braga. “A apateia [indiferença] do bode e o confronto de olhares interiores profundos de Rodrigo Braga entre os dois animais é a cena mental do conhecimento e da concentração da meditação. O artista, sem a culpa, opõe-se a Beuys. Nada ensina a bichos, não é amestrador de pathos do drama do barroco alemão”, reflete Herkenhoff acerca da fotografia de Comunhão que mostra a cabeça do artista encostada à de um bode morto, os dois corpos ocultos sob a terra.

Comunicação por meio de latidos

Graz

Legenda: Videoinstalação Nightshot 3 (2000), de Graziela Kunsch (foto: Cortesia da artista)

Nem poodle nem rottweiler, o cão que a artista Graziela Kunsch elegeu incorporar nas obras Nightshot (2000) e Nightshot 3 (2000) foi um vira-lata. Para realizar o primeiro vídeo, Kunsch se fechou sozinha em uma sala escura da faculdade onde estudava e passou a madrugada inteira latindo para a câmera. No outro trabalho, que resultou em uma videoinstalação, a artista perambula pelas ruas de São Paulo – também de madrugada – latindo para as pessoas que cruzam seu caminho.

São cinco horas de filmagem, em que ela se comunica apenas por meio de latidos, sendo acolhida por uma ou outra demonstração de empatia, mas também ridicularizada e enxotada. Recentemente, ela revisitou os trabalhos de formação ao participar do Festival de Inverno da UFMG, que tinha como tema “o bem comum” e contou com a presença de muitos índios. “Eles entoavam cantos lindos em diversas situações e, no dia do debate em que eu era uma das convidadas, pedi permissão aos presentes para fazer o meu canto também. Foi difícil, mas eu lati por alguns minutos, após anos sem latir”, conta Graziela Kunsch. “Sobre o entendimento desses trabalhos como tendo informado minha produção posterior, eu precisaria de tempo para pensar.

Uma possibilidade é o sentimento de margem em relação ao sistema. Mesmo dentro, não me sinto exatamente dentro ou aceita. Participei de uma bienal, em breve estarei numa exposição grande no Museu de Arte do Rio (MAR), a ser inaugurado em novembro, mas a única coisa que parece fazer sentido para mim é o ‘não caber’, como na época dos Rejeitados (projeto coletivo de envio de portfólios ao Salão da Bahia que incluíam a cláusula ‘só aceito ser selecionado se todos os outros Rejeitados também forem incluídos’, que inviabilizava o processo de seleção). Acho que há algo de vira-lata nisso, não?”

Uma resistência que muitos artistas encontram no mundo da arte, a dificuldade de sentir um real pertencimento, aparece nos vídeos na forma da incomunicabilidade: o latido pode ser interpretado como angústia, solidão, como violência ou defesa, como tentativa de aproximação e de sentido, mas, sempre e infalivelmente, é algo que apenas se pode interpretar, nunca entender. A comunicação fica sempre aquém de qualquer racionalização, e isso reforça o aspecto do vira-lata como retrato emblemático da condição do artista e da arte. “Acho importante dizer que os latidos não são só incomunicabilidade, mas, antes, outra forma de comunicação, não verbal, corporal. Os latidos têm muito a ver com liberdade, com romper certos limites”, reflete.

Nos trabalhos que vieram depois, Graziela Kunsch afastou-se de um retrato subjetivo do artista para documentar situações de exceção bastante objetivas do mundo-cão. As manifestações documentadas no Projeto Mutirão têm o aspecto de subverter ordens e regras ou controles, mas também (ou por isso mesmo) funcionam como flagrantes de condições injustas, desumanas, autoritárias etc.

Vida de mascote

Cao Feo

Legenda: Hungry Dog, fotos da série Rabid Dog (2002), de Cao Fei (foto: Cortesia da artista e da galeria Lombard Freid, NY)

Pioneiras da arte conceitual e de base midiática, é possível dizer que as ações do General Idea também anteciparam muito do mundo-cão cultural. Os trabalhos do grupo em geral mimetizavam o maquinário do estrelato, se apropriando e subvertendo formas da cultura popular, como concursos de beleza, butiques, programas televisivos de entrevista, pavilhões de feira comerciais.

“Estar em um trio nos liberta da tirania do gênio individual”, escreveram os integrantes do grupo em um manifesto intitulado How our Mascots Love to Humiliate Us… Revelations from the Doghouse (Como os nossos Mascotes Amam nos Humilhar… Revelações da Casa de Cachorro). O grupo publicou durante dois anos a revista FILE, anagrama e paródia da revista Life, apropriando-se de elementos do fluxo da mídia cultural e da arte contemporânea. Ela antecipou zines queercore e punk dos anos 1970 e 1980, bem como intervenções mais recentes na mídia de massa, como a revista antiglobalização Adbusters, de Vancouver, no Canadá. E não é só por meio de autorretratos como cão que os artistas expressam seus desejos recônditos de latir para o mercado ou para o sistema.

Exemplo disso é Cao Fei, artista chinesa que participou da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, com uma instalação que apresentava as aventuras de seu alterego China Tracy, avatar da artista no Second Life que inventou uma construção utópica chamada RMB City, caricatura fantasiosa das contradições da China contemporânea. Em uma série anterior ao mergulho na vida digital, Cao Fei havia sintetizado as agruras de hoje em seu país. Nos vídeos e fotografias de Rabid Dog Series (2002), a artista mostra como o ambiente do trabalho esconde um mundo de submissão, em que nos comportamos como cachorros em troca de uma bolsinha Burberry no fim do mês.

Matéria publicada originalmente na edição 08, outubro 2012