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Postado em 23/08/2012 - 5:19
O homem sem a câmera
Giselle Beiguelman

Internet consagra a estética do banco de dados e permite a cada espectador fazer a sua fábrica coletiva de cinema

Poscinema

Legenda: Cena de Whiteonwhite, filme de Eve Susseman, que se monta em tempo real, via programação algoritmíca (Foto: Simon Lee. Orange Factory, 2009. Da série Shadow Over the Land for Eve Sussman)

Já se tornou senso comum dizer que vivemos em um mundo de imagens. Nenhuma novidade aí. Fala-se, discute-se e celebra-se o tema com recorrência desde os anos 1960. Mas a situação com que nos defrontamos hoje é inédita, sua escala não tem precedentes. Quando se afere o que se passa nas redes sociais, os números são capazes de convencer o mais cético e tecnofóbico dos analistas. Em um mês o YouTube recebe mais vídeos do que as três principais emissoras de tevê dos EUA produziram em 60 anos. E esse é apenas um entre muitos dados impressionantes. Despejadas aos quaquilhões de bytes por segundo na internet, as imagens do século 21 tornam-se também espaços de sociabilidade, por onde outros regimes estéticos, que não são os das escolas de cinema e de artes, fluem e se impõem, especialmente no YouTube, rompendo cânones de classe, gênero e mercado.

Todo um outro paradigma de consumo e produção está se montando aí e evidenciando que as imagens deixaram de ser planos emolduráveis e tornaram-se os dispositivos mais importantes da contemporaneidade, canibalizando o direito de acesso de projeção do sujeito na tela, subvertendo os modos de fazer (enquadrar, editar, sonorizar), mas também os modos de olhar.

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Legenda: Still de Pacific, filme de Marcelo Pedroso feito apenas com imagens gravadas pelos passageiros de um cruzeiro do Recife a Fernando de Noronha. Clique na imagem para ver o vídeo. (Reprodução)

Por um lado, vemos emergir como protagonista, em particular no Brasil, sem qualquer cerimônia, o personagem que já foi o mais ausente tematicamente da cena cinematográfica nacional: a classe média, conforme já foi analisado em profundidade em um ensaio seminal de 1967 de Jean-Claude Bernardet (Brasil em Tempo de Cinema). Por outro, fenômeno tão brasileiro quanto global, vai se tornando comum um modo de vida mediado pelas lentes, em que tudo pode ser registrado e tubado, antes mesmo até de ter existido, como se a documentação pudesse prescindir do fato e da experiência das coisas. A câmera parece justificar o estar no lugar e em cena. Esses dois aspectos são essenciais em um dos mais interessantes documentários brasileiros recentes, Pacific (2009), de Marcelo Pedroso. Feito com imagens gravadas pelos passageiros de um cruzeiro (o próprio Pacific) que faz o trajeto Recife-Fernando de Noronha, o filme mostra não só a cara da classe média pelos olhos da classe média no contexto da classe média, como também revela, escancaradamente, as texturas dessas imagens produzidas aleatoriamente, no afã de registrar o acontecimento antes mesmo de ele ocorrer.

Logo na abertura, vemos/ouvimos, entre o marulho e os gritos de uma multidão histérica à espera – há 50 anos, conforme diz uma senhora documentarista/personagem – da aparição dos golfinhos: Filmou? Ao que o outro responde: Mas é lógico… E do que valeria ter ido, então, se não fosse para registrar que se estivesse estado lá, ainda que gravar compulsivamente nos roubasse o privilégio de ver?

Não se engane pensando que estamos em plena era do remake da Sociedade do Espetáculo. Adentramos o espaço do que a crítica inglesa Sarah Cook bem chamou da migração do Broad para o Narrowcasting, ou o que chamaríamos aqui de a batalha pelo direito de ser superstar para sua família e sua minimultidão de 20 fãs. É isso que deve ter mobilizado as centenas de pessoas que voluntariamente doaram seus arquivos à produção do filme Pacific. Todo o documentário foi negociado pessoalmente por um grupo de produtoras que viajou no navio e ao final do trajeto abordou os passageiros solicitando seu material. Com muito gosto o material foi disponibilizado, resultando em um longa-metragem que documenta uma viagem sem nenhuma imagem captada pelo diretor e da qual também ele não participou. É a “escola” Do It Yourself Hollywood impondo-se inegavelmente nessa movimentação cada vez mais intensa de cinemas do homem sem a câmera.

Outra forma em que essa filmografia pós-YouTube se afirma é pela estética do banco de dados. Ela tensiona a hierarquia das rotinas de programação das grandes bases de dados online ao abri-la para a recombinação das informações contidas nessas bases.

Legenda: Um trailer de whiteonwhite: algorithmicnoir (2011), de Eve Sussman e a equipe da Rufus Corporation

Isso pode se dar a partir de universos fechados que se tornam infinitos, como em whiteonwhite: algorithmicnoir (2011), de Eve Sussman e a equipe da Rufus Corporation, ou da conversão de arquivos sempre crescentes, mas não preparados para remixagem global, como o que ocorre em Breaking the News – Be a News Jockey, de Matt Lee (2007). Pode dar-se também a partir da apropriação de tags populares em um banco de imagens do porte do YouTube e, a partir daí, desencadear um processo de vertigem na paisagem mais globalizada do planeta, tal qual acontece em Vista On, Vista Off II (2012), da brasileira Denise Agassi.

No primeiro caso, temos 3 mil cenas gravadas em ruínas comunistas do Cazaquistão. Elas são combinadas, enquanto o filme é projetado a partir de algumas palavras-chave (como neve, apocalipse, futuro etc.) e 150 músicas, em um loop contínuo, por um programa que improvavelmente conseguirá repetir a mesma combinação.

No segundo, em Breaking the News, Matt Lee nos convoca a ser um “news jockey”, remixando notícias em tempo real. Basta digitar uma palavra ou seguir os trending topics do dia. Seu programa faz uma busca em bancos de dados variados na web e disponibiliza alguns filtros para que cada um possa dar o seu tom e ritmo ao marasmo das informações que se sucedem nos inúmeros clippings online. É possível salvar o seu videoclipe no final e tanto as versões instalativas para exposições, quantas as para acesso no computador são um sucesso há anos.

Já em Vista On, Vista Off II, de Agassi, somos convidados a manipular um dispositivo circular que aciona a projeção de uma série de vídeos, todos provenientes do YouTube, cruzando informações de uma bússola digital com palavras-chave pré-selecionadas em diversos idiomas. Essas palavras se referem a tipos de vista (aérea, panorâmica, mirante etc.) e aos locais apontados pelo dispositivo.

Legenda: Trecho de Vista On, Vista Off II (2012), de Denise Agassi.

Os tamanhos das projeções que vemos na tela correspondem, imaginária e proporcionalmente, à distância entre o local onde a obra está instalada e o lugar que se vê na imagem, criando uma ilusão de profundidade espacial. Quanto mais movemos o dispositivo circular, mais vídeos são carregados na tela, superpondo-se em distintas camadas.

Curiosamente, somos confrontados com a situação de estar diante de um timão que, se não é capaz de navegar por todas as paisagens do mundo (se é que, no limite, toda imagem do mundo não estaria hoje, de certa forma, depositada no YouTube), é certamente a paisagem globalizada por excelência. No seu horizonte, anunciam-se também as possibilidades de outras fábricas coletivas de cinemas e novas imagens.

*Publicado originalmente na edição impressa #6.