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Postado em 15/01/2014 - 5:22
O outro lado da rede
Nina Gazire

Para além do lado escuro da rede, das estratégias da NSA e de projetos como o PRISM, busca-se uma internet com liberdade de compartilhamento e privacidade de dados

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Legenda: Ilustração: Duquegalo 250

O sonho de uma rede livre e baseada em ideais de igualdade de acesso e privacidade não é novidade na história da internet. “Na verdade, ela sempre foi impulsionada por um desejo tanto de sigilo quanto por de transparência”, escreveu o jornalista Andy Beckett, no Guardian, ao fazer, em 2009, um dossiê sobre uma parte desconhecida da rede mundial de computadores que foi batizada de Deep Web. O termo, que pode ser traduzido em português como “rede profunda” e parece ter saído de um livro de Herman Melville ou de Júlio Verne, surgiu no ano 2000, foi cunhado por Mike Bergman, fundador da Bright Planet, empresa especializada em vasculhar redes de computadores de difícil acesso. Descreve toda a parte da internet (links, websites, fóruns etc.) que não pode ser encontrada por buscadores comuns, como o Google ou o Bing.

Estima-se que a Deep Web seja 5 mil vezes maior que a rede tradicional de computadores, ou seja, a surface web (rede de superfície), a camada da rede onde navegamos usando protocolos http e onde estão o Facebook, o Google e grande parte dos sites navegáveis. Nos tempos obscuros de NSA (National Security Agency) que estamos vivendo, é natural que esses números estimulem fantasias e que o fenômeno ganhe contornos sensacionalistas. “Mas a Deep Web tem a ver com a noção do privado e do anonimato”, pondera Silvio Rhatto, especialista em segurança de redes e ativista digital brasileiro. “Existem mecanismos no Facebook que permitem que páginas ou perfis não sejam encontrados por buscadores. Eu mesmo não tenho Facebook e, por não acessá-lo, ele se torna para mim uma parte da Deep Web também. Uma intranet ou site com login também entram nessa categoria. O conceito é muito mais amplo do que se pretende”, diz Rhatto.

Redes independentes

Caso você não saiba, o meu, o seu, todo e qualquer computador conectado à internet possui um número único e exclusivo chamado IP, que permite que informações sejam trocadas com outros computadores e servidores. Essas informações ou comandos são chamados de Hypertext Transfer Protocol (Protocolos de Transferência de Hipertexto) e são a base de dados da World Wide Web, a famosa www, onde as pessoas navegam. Navegar pelos protocolos http significa passear pela rede deixando um rastro facilmente identificado por meio desse número chamado IP.

Mas outros modelos de redes criadas para o compartilhamento e navegação feitas com segurança e direito ao anonimato têm sido propostos. Um exemplo é o OccupyHere, projeto que nasceu em 2011, durante o Occupy Wall Street, em Nova York. Enquanto Zuccotti Park estava tomado por manifestantes que bradavam contra a desigualdade mundial, o artista e web designer nova-iorquino Dan Phiffer observou a presença massiva de celulares e outros dispositivos móveis e pensou em criar uma rede anônima, na qual os manifestantes pudessem trocar informações sem ter de usar outras redes mais tradicionais, como o Facebook.

A partir de roteadores independentes que usam software livre e que não precisam se conectar diretamente à grande rede de computadores, Phiffer concebeu um dispositivo que criou uma rede de área local que podia ser acessada a partir de celulares e outros dispositivos com conexão Wi-Fi. “A ideia era a de um fórum de discussão e site de compartilhamento de arquivos projetado em torno de um único roteador Wi-Fi que funcionava com OpenWrt Linux”, explica Phiffer em entrevista por e-mail à seLecT. “É um software social que não precisa de internet para funcionar. O roteador Wi-Fi não requer uma senha, mas funciona como um portal cativo, redirecionando você para um único site, onde poderá escrever mensagens de forma anônima e compartilhar suas fotos ou vídeos. O projeto começou como uma espécie de intranet para os ocupantes, mas, uma vez que a rede Wi-Fi de Zuccotti Park foi desativada, comecei a me concentrar em construí-lo com outros nós de redes autônomas e temporárias”, diz o designer. Phiffer recebeu recentemente uma bolsa do Rhizome Comission Program, organização sem fins lucrativos voltada para práticas artísticas alinhadas à tecnologia e novas mídias. O incentivo permitirá que o designer, pertencente ao coletivo Future Archaelogy – grupo engajado em práticas ciberativistas –, dê continuidade ao OccupyHere.

Darknet: troca anônima de informações

Na mesma linha de ação, a Freenet, criada em 2000 pelo então estudante irlandês Ian Clarke, possibilita que os computadores conectados funcionem ao mesmo tempo como clientes, servidores e protocolos criptografados que não permitem descobrir a origem ou a direção do compartilhamento de informações. Essa característica hermética acabou por enquadrar a Freenet em outro conceito conhecido como Darknet, que, ao contrário do que se propaga por aí, não diz apenas de redes criadas para trocar arquivos, espalhar vírus ou informações escusas e duvidosas, mas também denomina redes fechadas que permitem a troca anônima de informações. “É importante perceber que o conceito de rede social é antigo e mais abrangente do que se entende hoje. O Facebook é uma rede que traz toda essa ideologia liberal de estar voltada para o indivíduo, porém, todos os seus dados estão guardados nas mãos de poucos”, observa Rhatto. “Novas redes, como a Diaspora, surgem como alternativa a essa proposta, e elas vêm adotando um funcionamento semelhante à internet arcaica: usam os modelos de fóruns anônimos e salas de bate-papo. Modelos que também estão presentes em toda Deep Web e que prezam pelo direito de governança da rede.”

Outras redes surgiram antes da www, lá no início dos anos 1990, e continuam ativas, como é o caso dos servidores IRC e outras que usam protocolos diferentes, como o Gopher ou o Tor. Originalmente um projeto da Marinha norte-americana, o Tor – sigla para The Onion Router – modifica, por meio de criptografia, o protocolo http, criando uma “rede de túneis” sobrejacente à internet, na qual os computadores de usuários comuns são transformados em roteadores. A navegação, então, é feita por meio de camadas, tornando impossível o rastreamento do usuário. Posteriormente, o projeto tornou-se uma organização sem fins lucrativos e foi apadrinhado pela Electronic Frontier Foundation, apesar de rumores de que um de seus maiores financiadores seja o governo americano. São relacionados ao Tor fatos tenebrosos sobre pedofilia, pornografia, terrorismo e, principalmente, tráfico de drogas, como é o recente caso do Silk Road. Foi ali, também, que surgiram o WikiLeaks e os Anonymous e é lá o lugar onde a moeda criptografada Bitcoin mais cresce.

Para além do lado escuro da rede, das estratégias da NSA e de projetos como o PRISM, há de se lembrar que estão na base dessa ambiguidade as tentativas de uma internet apoiada no direito à neutralidade, liberdade de compartilhamento e privacidade de dados. Patinamos na ponta de um iceberg que é feito mais de ignorância do que de terror.

*Reportagem publicada originalmente na edição #15