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Five Folded Curtains (2008), de Ulla von Brandenburg (Foto: Cortesia Ulla von Brandenburg/ Art Concept Paris)
Postado em 13/10/2016 - 12:39
O paradoxo do segredo
Realizada em Frankfurt e Bordeaux em 2012, a exposição Sociedades Secretas ganha versão editorial especialmente desenhada para seLecT
Cristina Ricupero

O fascínio pelo oculto e pelos territórios desconhecidos não é novo; ele vem e vai com o passar do tempo, sempre com a capacidade de se renovar, como nos mostraram muitos escritores e pensadores proeminentes. Figuras históricas importantes, desde Goethe, Hoffmann, Edgar Allan Poe, Baudelaire e Balzac, para citar apenas alguns, a outras mais contemporâneas, como Aldous Huxley, William S. Burroughs, Fernando Pessoa, William B. Yeats e Allen Ginsberg, incluindo ícones culturais como Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin e David Bowie, produziram obras brilhantes sob a influência do ocultismo. Nas artes visuais, a palavra “espiritual” foi usada para cobrir as práticas diversas que inspiraram os primeiros grandes artistas modernistas, tais como Kasimir Malevich e Wassily Kandinsky. O forte interesse que os surrealistas tinham pelo oculto, o sobrenatural e o subconsciente é bem conhecido, como vemos em Giorgio de Chirico, René Magritte, André Breton, Salvador Dalí, Victor Brauner e Yves Tanguy, entre outros.

Por que se tem renovado o interesse pelo oculto no campo da arte nos últimos dez a 15 anos? Por que o tema é tão atual? É claro que o clima pós-apocalíptico associado à virada do milênio, diretamente ligado a eventos como o 11 de Setembro, a Guerra do Iraque, os recentes ataques terroristas e a crise econômica e ecológica, criou o terreno perfeito para esse interesse renovado pelo desconhecido. Os artistas estão prontos para abordar o inexplicável, o misterioso, o subconsciente e o negativo para reinventar a cultura visual.

Temas como as ameaças, a paranoia, a morte e a violência nos revelam o estado do mundo e ao mesmo tempo se materializam em formas novas de niilismo, melancolia e exploração de situações extremas O oculto permanece como negação, antítese e contrariedade por definição, e é especialmente útil em tempos de crise.

Instalação The Tiral of Henry Kissinger, de Eva Grubinger (Foto: Cortesia Schrn Kunsthalle)
Instalação The Tiral of Henry Kissinger, de Eva Grubinger (Foto: Cortesia Schrn Kunsthalle)
Vista da exposição Sociedades Secretas, com expografia desenhada pelo artista Fabian Marti (Foto: Cortesia Schrn Kunsthalle)
Vista da exposição Sociedades Secretas, com expografia desenhada pelo artista Fabian Marti (Foto: Cortesia Schrn Kunsthalle)

Alguns anos atrás, fui cocuradora  de uma exposição intitulada Sociedades Secretas, que se realizou primeiramente na Schirn Kunsthalle, em Frankfurt, e depois teve nova apresentação no CAPC Musée D’Art Contemporain de Bordeaux (2011-2012). Durante a preparação da mostra, nos inspiramos num desafio central: como apresentar ou representar o invisível? Como lidar com ele? Por que e como, neste caso, tornar público o que é secreto por natureza? Nossa pesquisa nos revelou como era difícil determinar as origens mais remotas das sociedades secretas: o Egito, os tempos neolíticos…. As sociedades secretas parecem ter sempre existido, mas o que realmente sabemos sobre elas? Não é de surpreender no fundo que não nos tenha sido possível conseguir informação clara, pois essa dificuldade se origina precisamente da natureza secreta de tais sociedades. Enfrentar e contornar essa contradição tornou-se um dos principais desafios do nosso projeto.

Ritual de iniciação
Segundo a Wikipédia, uma sociedade secreta é um clube ou uma organização cujas atividades e funcionamento interno são ocultos aos não membros. A expressão “sociedade secreta” é geralmente aplicada a organizações que vão das meramente banais e inofensivas (como as fraternidades universitárias) a organizações míticas descritas em teorias da conspiração como enormemente poderosas, com agendas financeiras ou políticas voltadas para seus interesses, alcance global e muitas vezes crenças satânicas. “Sociedade secreta” é uma expressão usada para descrever organizações diferentes. Embora o sentido exato do termo seja discutível, várias das definições propostas indicam que deve haver um grau de sigilo e de conhecimento secreto. Isso pode significar que os membros estão submetidos à estrita obrigação de negar que conhecem a existência do grupo, podendo sofrer consequências negativas por reconhecer que fazem parte delas. Inclui ainda fortes ligações entre os membros da organização e, frequentemente, rituais que os não membros não podem testemunhar. Uma sociedade secreta pode ser definida basicamente por três características: é exclusiva, afirma possuir segredos especiais e demonstra forte inclinação a favorecer seus membros. Quando têm finalidades políticas, subvertem regras sociais e leis, algumas sociedades secretas são ilegais. Alguns exemplos mais conhecidos são a Maçonaria, a Rosa-cruz, a Cabala, a Máfia, a Ku Klux Klan e, em nossos dias, a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (EI).

Um dos colaboradores do catálogo da exposição, Jan Verwoert, jogou luz sobre o assunto: “Não há como desvendar, retirar o véu do segredo. O segredo é o véu. Sua única verdade é a função que preenche dentro de uma certa lógica social, ao operar como uma barreira visivelmente invisível entre o interior e o exterior de uma comunidade exclusiva”.

Tarot (2008), de Ulla Van Brandenburg (Foto: Cortesia Ulla von Brandenburg/ Art Concept, Paris)
Tarot (2008), de Ulla Van Brandenburg (Foto: Cortesia Ulla von Brandenburg/ Art Concept, Paris)

 

Tarot (2008), de Ulla Van Brandenburg (Foto: Cortesia Ulla von Brandenburg/ Art Concept, Paris)
Tarot (2008), de Ulla Van Brandenburg (Foto: Cortesia Ulla von Brandenburg/ Art Concept, Paris)

Essa análise foi especialmente interessante, pois a exposição tentava abordar e desenvolver o chamado “paradoxo do segredo”: o fato de que um segredo só existe quando é comunicado (e, obviamente, deixa de ser segredo…). As sociedades secretas interagem e jogam com a sociedade em geral e sua cultura de mídia. Na verdade, as tecnologias da comunicação atuais criam, por meio das redes sociais, as melhores e mais adequadas condições para o surgimento de novas sociedades secretas. Estas escapam, mas ao mesmo tempo dependem das estruturas de poder existentes – são subterrâneas e não podem existir abertamente.

Códigos estéticos
É importante deixar claro que jamais foi nossa intenção, como curadores, fazer um projeto “sobre” as sociedades secretas, uma pesquisa científico-etnográfica ou sociológica que cobrisse o tópico de forma abrangente, nem uma exposição de arte para “ilustrar” o tema. Em vez de “comentar”, nosso desejo era tentar criar um ambiente tal que mergulhasse o espectador no mundo mental das sociedades secretas. Uma exposição que pudesse funcionar de certa forma como um ritual de iniciação, induzindo o visitante a viver certas experiências. Foi exatamente por isso que encomendamos ao artista Fabian Marti o desenho de um display especial, capaz de “orientar o espectador a escolher certos caminhos”, uma arquitetura que pudesse ao mesmo tempo esconder e revelar, mas sempre manter o segredo! Assim como as sociedades secretas inventam suas próprias marcas identificáveis, pensamos que deveríamos também inventar nossos próprios códigos estéticos.

Desde o início pensamos em dividir o espaço da exposição em zonas diferentes, espaços abertos e flexíveis que cobririam certos temas de sociedades secretas que estariam de todo modo interligados. O mesmo aconteceu com o audioguia encomendado ao escritor Gary Lachman (que também colabora nesta edição de seLecT), cujas forma e função eram particulares, já que ele não funcionava da maneira clássica, comentando a exposição e as obras expostas, mas era bastante independente, atuando mais como um guia aberto ao tema das sociedades secretas. Ele foi concebido como uma coisa flutuante, à deriva, que poderia evocar alguma espécie de experiência pessoal no público, não apenas informá-lo. Apesar de o espaço da exposição e o audioguia terem sido concebidos e divididos em zonas ou capítulos (Iniciação, Mestres Ocultos, Conhecimento Secreto, Símbolos, Estados Alterados, Consciência da Conspiração), todas essas coisas se interligavam.

Para alguns, o mundo da arte pode ser visto como uma espécie de sociedade secreta, aparentemente aberto, mas na verdade muito fechado, com seus próprios códigos de identificação. No entanto, é preciso tomar cuidado ao tirar essa conclusão, que pode facilmente reproduzir uma ideia excessivamente romantizada da arte como forma de resistência ou culto.

Alguns artistas e escritores criaram no passado suas próprias “sociedades secretas”, inventaram uma sociedade secreta fictícia como obra de arte, ou simplesmente operaram de maneira semelhante, com afiliação exclusiva e regras rígidas de comportamento. A maioria dessas ideias é ainda hoje interessante e desafiadora. Poetas como Yeats ou, ainda mais, Fernando Pessoa foram fortemente influenciados por seus contatos ou pela participação em sociedades secretas. Embora a Lettrist International (LI) nunca tenha se intitulado uma sociedade secreta, seus membros se constituíram em uma microssociedade provisória, que funcionava de maneira semelhante, com seu modo de vida muito radical, isolamento e regras estritas de inclusão e exclusão. A LI vivia “à margem da economia”, e o lazer era visto como o ápice da civilização.

A revolução que eles prometiam era a supremacia da arte e o fim do trabalho. A LI foi fundada por Debord e Wolman e era constituída por quatro mulheres e sete homens. Durante anos, Debord e Wolman sobreviveram a todos os outros membros, que foram gradualmente excluídos, até que o próprio Wolman, finalmente, foi expulso em 1957.

Georges Bataille fundou uma sociedade secreta e uma revista pública chamadas Acéphale, cujo símbolo era um homem decapitado desenhado pelo artista André Masson. Essa sociedade secreta organizou várias reuniões noturnas na floresta, perto de um carvalho que tinha sido atingido por um raio. Os membros da Acéphale eram obrigados a adotar e a participar de diversos rituais, e também deveriam meditar sobre textos de Nietzsche, Freud, Sade e Mauss, lidos durante as reuniões.

Arte como oculto
Jim Shaw inventou um culto fictício chamado Oism, baseado em seu interesse pela influência dos movimentos religiosos na sociedade americana. Supostamente fundado por Annie O’Wooten no interior do estado de Nova York, em meados do século 19, o Oism baseia-se na crença da reencarnação, na reversão do tempo e em uma divindade feminina simbolizada pela letra “O”. As instalações que tratam do Oism funcionam como telões de teatro que combinam personagens reais e fictícios relacionados ao culto inventado.

Há alguns anos Joachim Koerster vem pesquisando e executando obras sobre uma sociedade esotérica do início do século 20, em Londres, a Ordem Hermética da Aurora Dourada, e seu membro renegado Aleister Crowley. O retrato de Crowley foi incluído na capa do disco dos Beatles Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, e seu imaginário encontra lugar nas canções de John Lennon e David Bowie, entre outros, revelando a posição de Crowley como um progenitor e avatar da força do oculto na contracultura. A presença de Crowley foi notada em uma série de fotos que Koerster tirou do local onde ele tinha fundado sua comunidade Abadia de Thelema, perto de Palermo, na Sicília, por meio de um diagrama sobre o oculto feito por Suzanne Treister e do filme Invocação de Meu Irmão Demônio, de Kenneth Anger, um de seus discípulos famosos.

Therise, de Fabian Marti (Foto: Cortesia Fabian Marti)
Therise, de Fabian Marti (Foto: Cortesia Fabian Marti)

Outras obras incluídas foram Sete de Ouros, instalação de Ulla von Brandenburg, que se refere livremente a padrões do simbolismo maçônico e ao tarô, pois se baseia na alquimia, na Cabala e na numerologia, enquanto o remake de Eyes Wide Shut  (Stanley Kubrick, 1999), realizado por Brice Dellsperger, Body Double 22, conduz a imagem-clichê das sociedades secretas ao seu extremo. Essa versão não linear e editada do filme é como um jogo de espelhos interminável, em que as imagens são desconstruídas e deformadas, provocando na mente do espectador memórias fraturadas do filme real (como um culto), criando um playground que lembra constantemente ao espectador sua instabilidade.

As conspirações políticas foram criticamente repercutidas em diversos projetos. Na monumental instalação de Eva Grubinger, O Julgamento de Henry Kissinger, um tribunal negro investiga o emaranhado do poder político do ex-secretário de Estado e Prêmio Nobel – uma figura de certa forma “acima da lei” ou “além do bem e do mal” –, enquanto Sean Snyder, com O Local, uma análise de fotos e textos sobre a prisão de Saddam Hussein em 2003, desmascara a adição de significado em evidências visuais insignificantes por si mesmas, e assim revela os mecanismos e as tendências das reportagens da mídia de uma maneira surpreendentemente relevante para a situação atual.

E o que dizer dos segredos na era do WikiLeaks? Em nosso atual universo de comunicações digitais, a revelação em massa de informações por meio de vazamentos e denúncias parece ser a regra, não a exceção. Mas a transparência absoluta e a explosão de informações não oferecem a melhor possibilidade de camuflagem? Os segredos são tão óbvios hoje que não temos mais consciência deles. Essas e muitas outras questões são levantadas na curadoria, cuja intenção não é capturar coisas invisíveis ou revelar conspirações, mas tentar explicitamente salientar o paradoxo de que os segredos só são segredos quando são comunicados, e desaparecem assim que vêm à luz.

Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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