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Escultura de Ângelo Venosa no térreo do MAC USP (Foto: Divulgação)
Postado em 26/11/2020 - 10:00
O que espera-se de um museu de arte contemporânea
MAC USP desenha seu programa curatorial para 2020-2024 em resposta a questões candentes da contemporaneidade

O ano de 2020 entrará para os autos da história da humanidade como um ponto de virada. A crise sanitária, resultante da crise ambiental e que tem como consequência uma grave crise econômica, merece reflexão profunda sobre as decisões que vínhamos tomando como sociedade, pautadas por um consumo desenfreado, pela afirmação do individualismo e distribuição desigual de riquezas. Essa situação trágica deveria nos levar a repensar nossos modos de vida e buscar a retomada de formas mais humanas, mais igualitárias e mais sustentáveis de viver. 

Já sabemos que suas consequências para a área da cultura e das artes são preocupantes. No caso dos museus, a pesquisa realizada pelo ICOM, ainda no primeiro semestre de 2020, apontava para o fechamento de 10% dos museus analisados, ameaçando a preservação de coleções e bens culturais em todo o mundo. Soma-se a isso a situação dos profissionais de museus, levando a uma compreensão equivocada de que objetos da cultura material e equipes especializadas são excludentes, ou seja, parece justificável optar pela demissão em massa de profissionais da cultura para a salvaguarda de bens culturais, e vice-versa. Recentemente algumas instituições tradicionais dos grandes centros econômicos vêm disponibilizando obras de seus acervos para pagar infraestrutura, despesas correntes e/ou seus quadros de profissionais, algo impensável até recentemente.   

Além disso, não é de hoje que a área da cultura e das artes está sob ataque, em especial em um país como o Brasil, no qual assistimos ao desmonte das instituições e políticas públicas para o setor, bem como investidas violentas de cerceamento do livre pensamento e de manifestações fundamentadas na representação de alteridades. Neste sentido, as comunidades afrodescendentes e indígenas, assim como grupos que atuam em prol das causas feminista e LGBTQ+, têm trabalhado para chamar a atenção da sociedade brasileira para a barbárie galopante.

Nesse contexto, espera-se de um museu de arte contemporânea, principalmente de um museu universitário, que ele seja o lugar de potencialização de trocas, encontros e reflexão crítica. Assim, o programa curatorial da gestão 2020-2024 para o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo entende-o como um museu-laboratório, abrindo-se para o fomento à produção artística, estimulando o envolvimento de estudantes em suas atividades, e investindo em parcerias interdisciplinares entre pesquisadores/curadores, artistas e docentes, dentro e fora da USP. A programação de extensão, em sentido amplo, como exposições, editais, seminários/webinários e atividades através do site institucional e de suas redes sociais partem das premissas estabelecidas pelas linhas de pesquisa do Museu e do perfil de seu acervo, para atualizá-los.  

Museu como metáfora da floresta
Prestes a completar seis décadas de existência, e instalado definitivamente em sua nova sede no Parque do Ibirapuera (em tupi, literalmente, mata que já foi mata), vemos o MAC USP como parte dessa paisagem maior. Lembramos que o Parque estabeleceu-se em torno da coleção histórica de plantas nativas da região de São Paulo, daí a premissa do museu como metáfora da floresta para desenhar o programa que pretendemos implantar a partir de 2021.

No segundo semestre de 2020, com o museu fechado para a visitação pública –em atendimento aos protocolos acadêmico-científicos estabelecidos pela USP em função da pandemia –, o MAC USP realizou uma série de atividades que serviram como piloto para o seu novo programa curatorial. 

Em agosto, foi ao ar o programa MAC USP Bastidores, por meio de seu canal no YouTube, com o objetivo de divulgar as exposições em preparo no Museu: Video_MAC (com curadoria de Roberto Cruz e que ganhou uma versão online disponível no site do MAC USP); Universo Invisível (com as obras de Paulo Nenflídio, selecionado no edital de exposições do Museu, em 2019);  Regina Silveira: Outros Paradoxos” (retrospectiva do trabalho da artista a partir de sua doação ao Museu em 2018; e parceria do Museu com a 34ª Bienal de São Paulo); e Projetos para um Quotidiano Moderno no Brasil, 1920-1960 (com seleção de  projetos das chamadas artes aplicadas no Brasil pertencentes ao seu acervo). 

Em setembro, realizamos duas lives de depoimentos: a primeira com Aracy Amaral que relatou  suas ações sobretudo em relação à videoarte quando diretora do MAC USP na década de 1980; e a segunda com o artista Tadeu Jungle, que no início do ano teve seu poema visual Você Está Aqui instalado na empena do prédio do Museu. No final-de-semana em que realizou sua live, Jungle propôs também uma “infiltração” de poemas visuais nas redes sociais do MAC USP. 

Entre setembro e outubro de 2020, o museu realizou o seminário MAC USP Processos Curatoriais – Rede São Paulo, na forma de webinário, que privilegiou as instituições paulistas, trazendo pesquisadores/curadores de dentro e de fora da universidade para apresentação de estudos de caso a partir de suas pesquisas. O seminário possibilitou ao Museu reconhecer uma rede de parcerias na cidade de São Paulo, que deverá se desdobrar em diferentes ações entre 2021 e 2024. Em 2021, MAC USP Processos Curatoriais: Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Arte deverá reunir pesquisadores do país e do exterior, que vem trabalhando com arte afrodescendente. Esses webinários terão continuidade em 2022 e 2023, enfocando métodos interdisciplinares de pesquisa curatorial. 

Assim como nas discussões promovidas pelos webinários, o programa de extensão do Museu também buscará articular as mais diversas formas de manifestações artísticas no programa intitulado Clareira. Esse convívio de linguagens foi testado na parceria firmada com a São Paulo Companhia de Dança e a orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que promoveu a interação de seus dançarinos com o acervo do museu, ação a ser apresentada em um vídeo gravado nos espaços expositivos do MAC USP. A Clareira, localizada no térreo do prédio do museu, irá congregar músicos, performers, bailarinos, escritores e atores,convidados a trazer questões candentes da contemporaneidade, de modo a abrir novas possibilidades de leitura e de ampliação do que compreendemos como sendo o acervo do Museu. A Clareira que dá  título a esta programação vem da metáfora da floresta: em tupi, Baependi  é uma área de pouca vegetação, ou de vegetação rasteira localizada no interior de uma floresta ou bosque, cumprindo um papel fundamental para sua renovação e sua diversidade. No caso da floresta amazônica, são áreas nas quais grupos indígenas nômades estabelecem assentamentos temporários.

A lógica Caaguaçu
Já o programa de exposições do Museu, distribuído nas galerias do prédio principal e em seu anexo, trabalhará prioritariamente com seu acervo, visto como uma grande floresta. Em língua tupi, chama-se uma floresta virgem de Caaguaçu, isto é, uma vegetação abundante, frondosa, com árvores de grande porte, capazes de nos dar a ver as camadas históricas do território original. A ocupação paulatina dos andares de exposição do prédio principal nos levou, ao longo desses primeiros anos em nossa nova sede, a concebê-los a partir de uma lógica específica. No 7º e 6º andares, está localizada a mostra de longa duração do acervo do MAC USP, que deverá ser trocada em 2022, por um grupo de trabalho formado por membros dos diferentes setores do Museu. A curadoria deverá partir de uma reflexão crítica sobre a experiência da primeira mostra de longa duração, inaugurada em 2016, e trabalhar nas especificidades do acervo, mas irrigada por questões atuais, tais como a representação de mulheres artistas em museus de arte, experiências transnacionais e de imigração nos séculos 20 e 21, alteridades e relações entre arte e política, entre outros. O 5º andar, dedicado à apresentação da arte mais recente com enfoque dado a uma seleção de novas aquisições do acervo do Museu, terá duas exposições novas em 2021, com duração de dois anos cada. Na primeira, a curadoria resultará de uma ação conjunta entre curadores do museu e artistas que possuem obras no acervo do museu.  A segunda, realizada na galeria expositiva menor do 5º andar, será parte integrante de um programa de exposições anuais em que as artes visuais, arquitetura, ecologia, meio-ambiente entre outros, serão colocados em diálogo, abrindo o MAC USP  para o entorno do Parque do Ibirapuera. Aqui também procuraremos estabelecer parcerias com outras unidades da USP e outras instituições, dentre os integrantes do que chamamos de Rede São Paulo, para pensar em leituras transversais do conceito de paisagem. 

O 4º andar é dedicado à extroversão da pesquisa curatorial realizada no MAC USP com recortes específicos de acervo, com periodicidade de 2 anos na galeria maior. Já a galeria menor deverá ser utilizada para projetos curatoriais mais pontuais com grupos de pesquisa do museu ou pesquisadores convidados. Por fim, o 3º andar do prédio principal do Museu será reservado para o edital de artistas emergentes do MAC USP e para propostas de exposições temporárias. Em 2021, entram aqui Paulo Nenflídio e o Grupo Empreza, ambos selecionados pelo edital de exposições do MAC USP em 2019. No segundo semestre de 2021, a galeria maior será reservada à exposição do artista Sidney Amaral, de quem o MAC USP recebeu seis obras em doação este ano. Ela terá um caráter processual, dando a oportunidade ao público de ver o processo de incorporação, tratamento e catalogação das obras em um museu. A mostra contará com a curadoria de Claudinei Roberto da Silva. 

Desde 2018, o 2º andar está ocupado com parte da reserva técnica do Museu. A partir de agora, ela será configurada como uma reserva técnica visível para o público. Tal estratégia, adotada em museus no mundo inteiro, visa a reforçar a curadoria como uma cadeia de recepção, guarda e identificação de obras, que não se resume apenas às atividades de extensão.

Reavaliar 22 e 72
No âmbito da nova sede do MAC USP, o anexo expositivo tem um papel importante dadas as suas características arquitetônicas, ou seja, por sua escala ampla e potencial de atividades e/ou ocupações diversas que permite abrigar. A partir de abril de 2021, o MAC USP retomará seu anexo expositivo, primeiro com a retrospectiva de Regina Silveira e, em seguida, com o que por ora chamamos de MAC 22 (2022, para reavaliar a Semana de Arte Moderna de 22) e MAC 72 (2023, reavaliação da história institucional do Museu a partir das exposições Jovem Arte Contemporânea). Tais proposições pretendem transformar o anexo expositivo do Museu em uma espécie de laboratório de experiências artísticas transdisciplinares, por meio de oficinas, cursos, debates, ocupações e exposições.

Para promover novas leituras do acervo do MAC USP,  será implantado o Laboratório de Curadoria do Museu, um programa de fomento à formação de jovens pesquisadores, em que alunos de pós-graduação de qualquer programa do Estado de São Paulo poderão se inscrever para propor verbetes sobre uma obra ou conjunto de obras que integram a mostra permanente de acervo (7º e 6º andares), e uma obra ou o conjunto das obras que constituem a pequena exposição de esculturas organizada em frente às salas de aula do Museu. A cada edição, serão selecionados sete textos através de uma comissão de pesquisadores/curadores convidados. Pretendemos realizar duas convocatórias entre 2020 e 2024.

Em 2020, demos início a uma série de ações através das redes sociais do Museu (sobretudo YouTube, Instagram e Facebook), que mostrou as potencialidades do mundo virtual para as atividades do MAC USP. É fundamental dar continuidade a essas ações, que envolvem séries de lives, webinários, ação educativa e cursos de extensão. Através deles, o Museu também deverá comissionar projetos artísticos digitais. 

Outra frente de disseminação das ações do MAC USP e sua produção será através da continuidade da coletânea de publicações MAC Essencial (com 17 volumes disponíveis em formato e-book no site do Museu), abrindo uma linha de arte e educação em 2021, bem como o programa Música no MAC – que teve versão online entre agosto e dezembro deste ano. 

Por fim, cabe ressaltar que o MAC USP, nesta gestão, quer  retomar o papel que exerceu em diversos momentos de sua história institucional como espaço de experimentação, reflexão crítica e formação. Museu aberto, lugar de encontro, de diversidade e colaboração.