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Postado em 27/11/2014 - 5:00
O que há por trás do Ocupe Estelita?
Diego Inglez de Souza

O movimento mostra que a manguetown dos anos 1990, hoje Hellcife, ainda é o epicentro de uma produção cultural múltipla, que irradia expressões significativas não só para a Região Nordeste, mas para o País e o mundo

Legenda: Vídeo de jornalismo combativo sobre o Movimento Ocupe Estelita, com apresentação do ator Irandhir Santos (realização: Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luis Henrique Leal, Marcelo Pedroso e Pedro Severien)

Uma metamorfose pela beira-mar surgia. Os angélicos corais, com seus milhares de vida, se viram do dia para a noite transformados em calhaus, em seixos, numa pedra capaz de lutar contra a força inexpugnável de um oceano, uma pedra brava, indomável. Sim, os lindos corais resistiram nessa luta de vida e morte entre o Recife e o Mar Oceano. Mas foram estas mesmas águas que ajudaram a dar vida a uma cidade e como procuraram destruí-la. Vagas que outrora eram indomáveis e de puras inocentes vagas se tornaram violentas capazes de jogar pelo chão um coqueiral. Nesse tempo calhaus já se tornavam pedras, mas a luta continuava, a areia das vagas marinhas. (…) Eu vi o mundo… ele começava no Recife. 
Cícero Dias, Ode ao Recife, 2001

Não surpreende que venham do Recife os ecos de uma inquietação popular que questiona as ‘arcaicas estruturas’ e habituais acordos da sociedade e da política na construção da paisagem e das clivagens territoriais nas metrópoles brasileiras. O Movimento Ocupe Estelita é um dos mais inovadores movimentos sociais que atuam na luta pelo direito à cidade no Brasil, para além da massa crítica, da tarifa zero e do passe livre, envolvendo a classe média, profissionais da cidade, Universidades e a população para pensar alternativas para o projeto de transformar o que resta dos armazéns do Cais José Estelita e do pátio de manobras ferroviárias contíguo em uma dúzia de torres de apartamentos de alto padrão. O que era figura – o panorama da Mauricéia retratada por Franz Post – torna-se fundo, para usar os termos do arquiteto e urbanista Luiz Amorim, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A reivindicação parece tão justa quanto simples: criar canais de participação popular nas dinâmicas de construção da cidade, usualmente monopolizadas pelas grandes construtoras, por vezes associadas ao poder público através de convenientes derrogações e artimanhas de gabinete.

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Legenda: Manifestação em prol do Cais José Estelita, ameaçado pelo projeto ‘Novo Recife’ (foto: Laís Vareda)

Podemos dizer que esta recente onda de movimentos contestatórios tem suas raízes nas críticas ao projeto Recife-Olinda, elaborado a partir de 2003, que mesmo partindo de outras premissas, criaria também outros problemas, muitos deles agravados no projeto ‘Novo Recife’, apresentado por um consórcio de construtoras à Prefeitura para a área adquirida em leilão em 2008. Ao promover a presença física através de acampamentos inspirados nos Occupys estrangeiros, trazendo vida e atividades para este particular pedaço do centro da cidade, estas ocupações efêmeras organizadas a partir de 2012 para impedir as demolições dos galpões, sorrateiramente iniciadas durante uma madrugada em 2014, acabaram por construir situações ímpares de encontro entre os poucos e empobrecidos habitantes permanentes destas plagas e os novos ocupantes efêmeros que organizaram aulas abertas, debates, oficinas e dinâmicas relacionais entre todos em espaços residuais pouco presentes no cotidiano da cidade, esporadicamente invadidos por uma multidão no carnaval, durante o Galo da Madrugada. A produção crítica nos mais diversos campos acerca da inviabilidade deste ‘Novo’ Recife, hoje disponível online através da plataforma Direitos Urbanos, impressiona pela consistência, produzida por diversos professores, ativistas e intelectuais envolvidos com o urbanismo em seu mais amplo sentido.

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Legenda: Projeto Som na Rural entra em sintonia com o movimento (foto: Direitos Urbanos/Divulgação)

O exemplo concreto mais evidente do modelo de construção que o movimento repudia está perto dali: as famigeradas ‘Torres Gêmeas’, abruptamente erguidas em um processo cheio de irregularidades e passagens nebulosas, mas poderíamos evocar também a construção de vários novos espigões no entorno da Rua da Aurora, além dos diversos projetos para a outrora favela de Brasília Teimosa, a outra margem do estuário que banha o Cais José Estelita, onde há também uma torre empresarial prismática revestida de vidro e alumínio. Todos estes novos ‘empreendimentos’ são símbolos da força do ‘setor’ da construção civil e imobiliário na capital pernambucana, que convive há décadas com uma crise habitacional crônica que lhe valeu nos anos 1970 o apelido de Mucambópolis. A Manguetown dos anos 1990, hoje Hellcife continua sendo epicentro de uma produção cultural tão rica quanto múltipla, irradiando e acolhendo expressões significativas não só para a região Nordeste mas para o país e o mundo, lidando diariamente com as tensões e conflitos urbanos presentes nas demais cidades brasileiras ali cristalizadas. Filmes recentes da mais nova geração de diretores pernambucanos, como o festejado O som ao redor (2012), de Kléber Mendonça, ou os documentários Um lugar ao sol (2009) e Avenida Brasilia Formosa (2010), de Gabriel Mascaro, nutrem-se precisamente dos embates característicos de alguns territórios da cidade que exprimem lutas de classe e de visões de mundo dissonantes. Tratam-se de episódios de uma incrível saga dos homens caranguejos contra os tubarões da especulação imobiliária, história que opõe distintos projetos de cidade e leituras antagônicas da paisagem e do que seja o ‘patrimônio’ histórico e natural, conflito que hoje atinge o centro geográfico e político, mobilizando questões fundiárias, econômicas e urbanísticas.

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Legenda: Jesus Tricolor e as vadias marchantes em manifestação no dia 12 de Maio (foto: Leonardo Cisneiros)

No que há de dar? Certamente em menos do que sonharam os ativistas e em mais do que gostariam os especuladores. Em meio aos eventos e espetáculos, as lutas e conflitos em torno da construção da cidade continuam, atravessando as décadas. Não resta dúvida que a simpatia amealhada pelo movimento de ocupação ativa, circunstanciada e propositiva traz um algo de novo e de utópico no panorama de uma das mais interessantes metrópoles brasileiras. No entanto, os ganhos reais conquistados pelo movimento serão muito provavelmente discretos, longe de colocar em questão a realização dos edifícios, apoiada inclusive por diversos setores da sociedade civil local. No panorama das lutas pelo direito à cidade e no imaginário de como pode ser a Nova Babilônia e as nossas metrópoles do futuro, certamente o Ocupe Estelita tem grande impacto.

Em tempo: por trás do Cais José Estelita e dos ramais ferroviários que o atravessam, corre a Rua Imperial, onde ainda resiste um ou outro sobrado característico daquela que foi uma das belas artérias da Veneza Americana…! Para quem quiser se aprofundar no assunto, conferir a série de artigos na revista O Grito! e o álbum de fotos no Flickr.

*Uma versão condensada desse texto foi publicada na edição #21