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still de Cosmoverse Arkstra (2020), de Ana Giselle A TRANSÄLIEN
Postado em 19/05/2022 - 6:53
O que pode a arte travesti?
Curadora propões diálogo com as artistas Manauara Clandestina, Vulcanica Pokaropa, Ana Giselle A TRANSÄLIEN, Dyony Moura e Bruna Kury

Enquanto pelo mundo soam as trombetas apocalípticas, quem tem olho vê e quem tem pele sente a chegada irreversível de artistas trans e travestis nos circuitos de arte contemporânea brasileira. Atualmente, curadores, galeristas, jornalistas, herdeiros, intelectuais, madames, trabalhadores, jovens e a senhora que veio apenas dar uma volta no intervalo do expediente se encontram com essa produção pela primeira vez. Alguns se perguntam: e agora?

Porque este ano organizei em São Paulo a exposição o dia antes da queda, fui convidada a escrever aqui sobre estéticas trans. Mas tentar definir uma estética seria, dialogando com Teresa de Laurentis, legitimar as agendas ocultas de uma cultura que devemos mudar. Proponho, então, pensar a relação entre cinco artistas: seus modos de criar, pensar e movimentar o mundo. Não falar sobre, apenas falar por perto.

Intercalando trechos de conversas, apresento a seguir projetos de Manauara Clandestina, Vulcanica Pokaropa, Ana Giselle A TRANSÄLIEN, Dyony Moura e Bruna Kury, artistas brasileiras que têm trabalhado em torno de práticas coletivas no cruzamento de dimensões de classe e identidade de gênero e raça no Brasil.

“É uma demarcação de vida, é sobre subverter uma lógica que nos profetizava a morte. Porque sou sobre vida. As travestis são sobre vida, sobre beleza, sobre poder, sobre glória”, assim Manauara Clandestina localiza sua série fotográfica Por Enquanto 35 (2019-em curso).

A partir de retratos feitos com Polaroid, ela reflete sobre a atual expectativa de vida das travestis no Brasil: 35 anos. São registros de momentos de celebração; há beleza, drinks, calor de festa. Abaixo dos retratos, as respectivas idades à caneta. A efemeridade das fotos instantâneas, que esmaecem sem deixar uma matriz em negativo, Manauara enxerga como forma de firmar um compromisso de reencontro.

Por Enquanto 35 (2019-em curso), de Manauara Clandestina

MANAUARA CLANDESTINA: Não vejo Por Enquanto 35 como um retrato efêmero. Muitas das meninas eu fotografo no aniversário mesmo, como registro de vida. Mas o compromisso é sempre estar refazendo esse encontro, ao longo dos anos, e tem sido um projeto que tem me conectado a outras gatas que eu não conhecia. Passou por São Paulo, Rio de Janeiro, São Luís, Salvador, Londres, Barcelona, e o meu desejo é expandir.

Manauara acaba de abrir a exposição individual SALTAÇÃO, em Lisboa e, ao lado de Luiz Felipe Lucas, finaliza o projeto fílmico de Migranta, realizado no centro de arte contemporânea Piramidón, em Barcelona. Migranta começa como pesquisa de upcycling, método de produção a partir do descarte, em um ateliê coletivo criado pela artista. O projeto recria possibilidades a partir de roupas de trabalhadores da construção civil, peças de alta visibilidade. A artista percebe a migração como uma tecnologia de vida e relaciona trabalho, consumo, deslocamento e autoaceitação ao registrar processos e memórias de travessia e diáspora.

Manauara Clandestina está criando arquivos, um gesto de conhecimento alternativo ou contramemória, forma de rememorar o que foi silenciado ou subtraído. Vulcanica Pokaropa é outra importante artista investindo na criação de arquivos independentes. Desaquenda (2019-2020), disponível na íntegra no canal de YouTube Cuceta Produções, é um projeto de videoentrevistas que a artista realiza com pessoas trans e travestis no circuito da arte e performance. A série, seu projeto de mestrado em teatro, é composta de cerca de 30 entrevistas.

VULCANICA POKAROPA: Desaquenda surge ao começar o mestrado e perceber a falta de referência teórica produzida por pessoas como eu. Surge para que outras pessoas tenham acesso às nossas produções. Também para que minha avó e minha mãe entendessem o que eu estava produzindo, já que a escrita muitas vezes fica limitada a um público específico. Por conta dos silenciamentos e apagamentos de nossas existências, resolvi que seriam de extrema importância a oralidade e a visualidade. Trazer as pessoas gesticulando, colocando intenção na voz, com contato visual torna o material mais humano.

Essa atenção ao gesto me lembrou uma entrevista de Chantal Akerman, em que a diretora afirma que mostrar cenas que ocupam o lugar mais baixo na hierarquia das imagens, como os gestos diários de uma mulher, é amá-los, reconhecendo neles seu valor negligenciado. Vulcanica é autora da série de pinturas Retribuição (2020), em que travestis surgem ao lado de homens brancos decepados, enforcados, na fogueira… algumas delas acompanhadas por frases: demandas, profecias.

VULCANICA POKAROPA: É um aviso! Durante a pandemia, a mortalidade de pessoas trans cresceu e eu vi na pintura uma forma de expurgar o que estava sentindo, avisar que esse mundo cis hétero branco colonizado está por um fio. (…) Vejo, sim, como profecia, para que nos encorajemos a fazer o que tem de ser feito, e isso não quer dizer sair matando pessoas, mas tomar decisões cotidianas, não aceitar mais a condição de vida sub-humana, a violência do Estado, a masculinidade nojenta, as transfobias cotidianas que nos adoecem e matam.

A trashrealoficial, plataforma artística independente criada em 2014 por Dyony Moura, funda-se também na atenção ao que foi negligenciado. Assim como Manauara, Moura desenvolve uma pesquisa a partir do reaproveitamento de material têxtil. Ambas são parceiras do ateliê TRANSmoras, da estilista Vicenta Perrotta. Por meio da trashrealoficial, Moura busca promover autonomia financeira e criativa para jovens trans, pretes, nordestines e não bináries, a partir da criação de peças livres das binariedades e padronizações da indústria da moda. Ela chama o reaproveitamento de transmutação têxtil, “forma de aproximar o discurso às nossas corpas, que estão atreladas às mudanças de vida”.

A artista cria em parceria com coletivos dissidentes, como a produtora Cabaça Produções e a coletiva artística As Talavistas. Além da marca, atua na criação de figurinos e instalações. Constrói seu acervo a partir de garimpos em lojas de retalhos, bazares, brechós, bancos de tecidos ou no próprio lixo, desencadeando processos de descoberta ao voltar sua sensibilidade para zonas desprezadas pela sociedade capitalista de consumo desenfreado.

Vingança, da série Retribuição (2020), de Vulcanica Pokaropa

DYONY MOURA: Esse trash não é um lixo físico, é o lixo das coisas que a sociedade não quer, como se fosse uma grande lixeira que o projeto acolhe, uma lata de acolhimento por onde passam todas as dissidências que a gente vive e que a sociedade branca patriarcal neoliberalista e colonial acha que devem ser descartadas, demolidas (…). Quando falo de trash, penso mais no que pode ser representado a partir do descarte. Quando as nossas corpas transicionam e caem num lugar de não mais utilização, não absorção no mercado de trabalho, de não ser mais útil para andar e sociabilizar nos espaços, a gente cai nesse lugar de descarte, isso é muito sensível de pensar, a transmutação têxtil como uma renovação, uma nova energia de vida, de utilidade e de presença dentro desses espaços.

Liberdade e prosperidade é o que busca Ana Giselle A TRANSÄLIEN, idealizadora da coletividade MARSHA! O coletivo promove ações afirmativas para a população transgênera desde 2018. Em 2020, promoveu o MARSHA! ENTRA NA SALA, primeiro festival LGBTI on-line, envolvendo dezenas de artistas em mais de 20 horas de programação.

looks da trashrealoficial, de Dyony Moura

ANA GISELLE A TRANSÄLIEN: Gosto de pensar na MARSHA! como um portal, um movimento de restituição para a população transvestigênere brasileira. O que era para ser apenas uma festa de enaltecimento da arte e da vida trans, em julho de 2018, veio a se tornar a continuidade de uma luta iniciada há muito tempo por Jovanna Baby, Brenda Lee e tantas outras, somos crias dessa linhagem. Talvez o pontapé para consciência política coletiva tenha surgido através da Lista TRANSFREE, política de inserção que promove entrada gratuita a pessoas trans e travestis em eventos privados, que criei em 2015, ainda no Recife. O Festival foi uma articulação natural do instinto de sobrevivência e das tecnologias de vida que a experiência da travestilidade nos faz desenvolver para nos mantermos vivas. “Não adianta apenas ser bonita, tem de ser ligeira!” – aprendi desde cedo. Enquanto um Estado de poder governado por um genocida pulsa morte, nós pulsamos vida. A MARSHA! é uma missão de vida!

Ana Giselle aparece em Por Enquanto 35, de Manauara Clandestina, com idade infinita. Conhecida pelo uso de máscaras, a artista faz lembrar Fred Moten, que descreve a estética da tradição radical negra como atravessada por uma privacidade pública experimental e performativa. Em Cosmoverse Arkstra (2020), A TRANSÄLIEN abre as janelas para seu universo misterioso e nos convida a habitar um espaço meditativo, permeado por sonhos, vibrações e estímulos sonoros e visuais.

ANA GISELLE A TRANSÄLIEN: Durante a pandemia, internamente, busquei o equilíbrio nas respostas do silêncio. É um mecanismo bem recorrente. Como um antídoto para retomar a lucidez diante da ansiedade, do caos: ouvir o som da respiração. Por experiências que vivi durante a minha construção, levei muito tempo para aprender a falar. Depois, me torno DJ e passo a expressar minhas mensagens por meio da música, das vibrações que exalo quando performo, enquanto existo. Cosmoverse é sobre a conexão entre frequências que somos e emanamos, sobre a sinfonia do nosso próprio corpo em sintonia com todas as vibrações da natureza.

Experimentações sonoras também atravessam a obra de Bruna Kury. A artista, que dialoga com práticas do pós-pornô, pensa sexualidade enquanto possibilidade criativa, de forma a descentralizá-la da genitália a partir de extensões corporais, próteses, acessibilidades e sensibilidades. Trabalha com sonoridades do corpo usando microfones e bólides, relacionando as conexões que o som faz com outras sensações. Em sua recente performance gentrificação dos afetos (2021), comissionada para a exposição Dizer Não, do Ateliê397, fruto da parceria e projeto póspornosonora, com Gil Porto Pyrata, Kury caminha no Centro de São Paulo vestindo um dispositivo na cabeça, uma caixa de acrílico com baratas dentro, cujos movimentos são captados por microfones de contato.

A TRANSÄLIEN em retrato feito por Candy Mountain

BRUNA KURY: Essa ação vincula as maquinações da colonização, que age tanto no âmbito territorial geográfico quanto das relações, inclusive afetivas e sexuais. São segregações baseadas na colonização dos corpos e dos sentimentos, na mesma ilógica das discriminações que servem às hierarquias de poder e da luta por território, sendo as corporeidades racializadas e dissidentes as que são marginalizadas. Sabe aquela música do Tim Maia que diz: “Na vida a gente tem que entender/que um nasce pra sofrer/ enquanto o outro ri”? Isso é parte da gentrificação dos afetos, os corpos que sofrem sabemos quem são.

O som sempre se fez presente nas minhas performances, gosto de um som que estimula. Quando performava com o coletivo coiote, muitas vezes cantávamos anarcofunk, projeto de que Mogli Saura fazia parte. Fazíamos batuques com instrumentos reciclados, referência do tempo que íamos ao bloco livre reciclato no Rio de Janeiro. Gosto de pensar também no punk, na antimúsica, no noise, alguns sons que podem não ser agradáveis todo o tempo. Essa pesquisa parte também de críticas que tenho ao póspornô quando este reproduz lógicas hegemônicas camufladas de revolucionárias.

CLARISSA AIDAR: Em dado momento, aparecem os dizeres “disforia de gênero humano”.

BRUNA KURY: Quando digo “disforia de gênero humano”, entre outras questões, refiro-me à despatologização. A categoria HUMANO é uma criação da colonização, assim como o binário homem/mulher. Até 2018, a transexualidade era considerada um transtorno e, no imaginário social, ainda somos anormalizadas, monstrificadas. As imagens antropométricas coloniais ainda reverberam, dizendo que o negro é inferior, incapaz, e isso de alguma forma é a encruzilhada que existe no trabalho, entre gênero, raça, classe etc. Um feminismo que não compreende e não se abre às pautas racializadas, trans e travestis é também maquinaria da colonialidade! Uma das provocações que faço é de pensarmos a colonização como uma grande infecção.

Gentrificação dos afetos (2021), performance de Bruna Kury

CLARISSA AIDAR: Gosto dessa provocação porque infecção é algo contingente. Isso me faz pensar no que poderia ter sido, no que pode vir a ser, se o organismo for revigorado…

BRUNA KURY: Sim, essa infecção pode ter várias perspectivas. Sair da lógica antropocêntrica e perceber que fazemos parte de um todo onde convivem conosco fungos, bactérias e vírus é compreender melhor o nosso próprio corpo e a relação com o todo. Existe uma sina de dominação que invisibiliza as forças que não são as hegemônicas. Acredito que a cisgeneridade e a branquitude estão investindo tanto na destruição alheia quanto na própria.

*

Por fim, sugiro pensarmos essas obras, projetos e práticas uma ao lado da outra, como frutos da ética e da poética dissidente que partilham hoje artistas travestigêneres de nossa geração. E assim refletir, não o que é, mas o que pode a arte travesti. O que seria dos espaços de arte – espaços de gente branca, rica e cisgênera – se acessados por dez, cem ou uma multidão de novas corpas? Ao que tudo indica, logo descobriremos.