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Vítima ou atriz numa farsa pós-orwelliana, Monique é o centro das atenções (Foto: Frederico Rosado)
Postado em 29/02/2012 - 4:41
O show tem que parar
Reação da rede Globo à denúncia de estupro no BBB escancara moralismo, sexismo e equívocos de um formato que se mostra obsoleto diante dos novos sistemas de controle pulverizado
Juliana Monachesi

A 12ª edição do Big Brother Brasil começou mal: no primeiro dia da gincana global (terça, 10 de janeiro), os 16 participantes se comprimiram dentro de um carro para disputar uma imunidade (regalia de não poder ser mandado para o paredão na primeira semana). Quem aguentasse mais tempo no carro – privado de água, comida e sono – ganhava a prova (e também o carro). Quando foi ao ar o programa do dia seguinte, o apresentador pedro Bial comunicou aos espectadores que três participantes permaneciam na disputa e, orgulhoso, afirmou que dali a 20 minutos a prova de resistência completaria 24 horas.

Considerando que dois dos três heróis da resistência eram mulheres, e que 24 horas sem esvaziar a bexiga pode causar infecção urinária, o mais razoável que se podia esperar da produção do reality show era que a imunidade fosse concedida aos três e a prova terminasse ali. Ao final do programa, no entanto, Bial apenas comemorou o marco das 24 horas e os telespectadores viram a atração acabar com a cena dos três abandonados à própria sorte dentro do veículo (a prova terminou seis horas depois, batendo todos os recordes de edições anteriores).Prenúncio de que o programa seria recordista em excessos por parte de seus diretores?

Três dias depois, ocorreu a festa em que, supostamente, Daniel se aproveitou do estado de semiconsciência de Monique para protagonizar uma cena de sexo. O programa de domingo mostrou cenas dos dois na cama, os corpos escondidos sob um edredom, e o rapaz realizando movimentos indubitavelmente correspondentes aos de um ato sexual. A cena foi arrematada por Bial com a infame frase “o amor é lindo”, a pérola que faltava para adornar sua brilhante carreira de jornalista.

No programa de segunda-feira 16, após a enxurrada de protestos em redes sociais e na blogosfera, a direção do BBB consentiu que houve algo de podre no reino da Dinamarca. Pedro Bial anunciou que Daniel havia sido eliminado do programa por comportamento inadequado. E arrematou: “o show tem de continuar”. A partir daí, tudo se passou como se o participante nunca tivesse existido.

Ninguém tocou mais no assunto, obviamente sob coerção, direta ou internalizada, do grande irmão. O que é mais perverso? Endossar um suposto crime – veiculando imagens no mínimo duvidosas em um contexto de romance – ou vetar, em seguida, qualquer menção ao assunto? Um crítico de televisão comparou o episódio da mudança de postura da globo, do domingo para segunda, com a manipulação da cobertura do comício das diretas já, em 1984, mascarada em festa pelo aniversário de São Paulo. “2012 não é 1984”, concluiu o crítico.

Vale notar que tampouco 2012 é 2002, quando a primeira edição do BBB foi ao ar. Naquela temporada de estreia, por exemplo, a mesma competição de permanência dentro de um carro durou “míseras” 14 horas. Os participantes têm mais resistência física dez anos depois? Não. Eles resistem melhor ao funcionamento de reality shows. Na quarta 18, Monique se esbaldou na festa seguinte à do “incidente” e, em conversa com outra participante, contou que brincava de Big Brother quando era criança – “A gente tinha uma poltrona na sala que a gente filmava e fazia de confessionário”, disse. Em 2002, ela tinha 13 anos, assim como a maioria dos integrantes desta 12a edição. Esta é uma geração que cresceu vendo BBB, conhece todos os seus códigos e, provavelmente, não considera o filme O Show de Truman (1998) uma metáfora distópica.

Outro motivo por que 2012 não é 1984 (nem 2002) é a vigilância distribuída, este novo player do jogo que coloca em xeque o modelo de vigilância advogado pela Globo na condução do BBB. Esse modelo de controle centralizado foi apropriado da figura literária de George Orwell para dar o falso poder de controle à audiência (por meio da votação para determinar quem sai e quem fica) sobre os albergados na casa “vigiada”. A emissora disponibiliza durante 24 horas imagens em tempo real da casa cenográfica tanto em seu site quanto por meio de sistema pay-per-view na tevê a cabo, para garantir a credibilidade da edição. Então, como imaginar que interpretações moralistas, sexistas e cínicas dos fatos serão engolidas em massa por um público que, paralelamente, compartilha sua própria interpretação em um sistema de controle pulverizado, desmascarando qualquer manipulação: a internet?

Tirar do ar o streaming do Big Brother seria como assinar uma declaração oficial de que não há nada de real nesse “show da vida”, esvaziando o interesse por ele. Manter a transmissão aberta pode desembocar em novas infrações de preceitos do Código Brasileiro de Comunicações, que prevê, entre as sanções cabíveis, desde multa até a interrupção dos serviços. Não seria hora de rever as regras do jogo?

Entretenimento tem limite e televisão não é coliseu. O diretor do programa, em uma última manobra de manipulação, chamou o público de racista. Preconceituosa foi a postura dele, ao usar a raça do participante para chamar aqueles que denunciaram o episódio de burros.

Mobilizações em resposta aos desmandos da direção do reality mostram que a inteligência é mesmo coletiva. O Movimento Defesa da Mulher, do Rio de Janeiro, e dois outros coletivos de direitos humanos decidiram atacar o inimigo pelo bolso e enviaram uma carta de apelo aos patrocinadores do BBB para se posicionarem em nome da responsabilidade social.

Com participantes e espectadores ultraespecializados na novela do século 21 que a Globo foi pioneira em criar (nos outros 23 países onde a atração da holandesa Endemol é replicada, não ocorre nem de longe a mesma repercussão na sociedade), ou bem ela faz radicais transformações no formato – como, por exemplo, admitindo um processo de edição tão compartilhado quanto a função de vigilância – ou, como escreveu uma amiga no Twitter, depois do ”show must go on” do ex-repórter, opta pela saída mais nobre: “The show must stop”.

*Publicado originalmente na #select4. Colaborou Nina Gazire.