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Postado em 21/10/2015 - 12:30
Observatório do Sul #1

Curadora do Observatório do Sul, plataforma de debates realizada entre SESC_Videobrasil e Goethe Institut, Sabrina Moura escreve sobre a importância do debate no “eixo sul”

Mesmo antes de começar oficialmente no último dia 6 de outubro, o 19o Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil já tinha iniciado uma intensa programação de debates relacionados ao seu grande tema de reflexão: Panoramas do Sul. Realizado entre maio e agosto de 2015, o Observatório do Sul, uma plataforma de debates e análises criada em parceria entre o festival e o Goethe Institut de São Paulo, reuniu curadores, acadêmicos e artistas para discutir o “sul global” dentro do contexto das artes e das ciências humanas.  

A iniciativa originou uma série de textos críticos que abordam, desde várias perspectivas, contextos e conceitos do eixo Sul-Sul. A série de ensaios produzida durante o Observatório do Sul será publicada no site da seLecT todas as quartas-feiras a partir de hoje (21). O primeiro texto é assinado pela curadora da iniciativa, Sabrina Moura.

Graduada em História pela PUC-SP e mestre em Estética e História das Artes Plásticas pela Universidade Paris VIII, Moura foi curadora de Programas Públicos do 18º Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil (2013) e organizadora dos workshops do  2º Fórum Mundial de Bienais, em São Paulo.

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Legenda: Curadora Sabrina Moura (Foto: Renata D’Almeida)

Sobre cruzamentos entre arte e conhecimento

Uma parte significativa das experiências propostas pela arte contemporânea se distancia de modelos pré-estabelecidos, abrindo caminho para que possamos explorar as várias facetas de seu potencial crítico, político e epistêmico. Ora, se há algo que esse campo nos ensina é a mergulhar na infinita possibilidade de interações com a arte, lembrando-nos que todo gesto ou argumento pode ser substrato para a criação de espaços dissonantes, abertos a outras formas de se construir conhecimento.

É em meio a esse horizonte de diálogos experimentais que o 19o Festival de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil e o Instituto Goethe de São Paulo juntaram forças para promover o Observatório do Sul – uma plataforma de estudos interessada em debater práticas artísticas e teóricas geradas fora do eixo euramericano. Em uma série de quatro sessões organizadas ao longo de 2015, o Observatório tomou como horizonte as trocas e intercâmbios em torno do chamado eixo Sul-Sul para propor vetores de interação entre as artes e ciências humanas. A cada encontro, interlocutores como a co-curadora da 32ª Bienal de São Paulo Gabi Ngcobo, o músico Siba, o antropólogo Pedro Cesarino, a atriz Rita Carelli, a curadora Solange Farkas, a historiadora Amy Buono, e tantos outros, juntam-se ao corpo de pesquisadores associados ao programa para discutir projetos críticos que vão da teoria pós-colonial ao perspectivismo, passando pelos estudos culturais e as geopoliticas do conhecimento.

Em oposição às nomenclaturas teóricas que continuamente se sucedem e se questionam, os artistas que participaram do programa propuseram debates concretos, pautados por um forte posicionamento político. Como os trabalhos de pesquisa-ação do artista brasileiro Daniel Lima – A revolução não será televisionada ou Zumbi somos Nós – que revelam fissuras históricas na formação da sociedade brasileira e identificam continuidades com as experiências de segregação racial sul-africana. “O Brasil não viveu o apartheid, pois nunca precisou dessa segregação institucionalizada pelo estado”, afirma Lima em referência ao pensamento do historiador Nicolau Sevcenko.

As experiências sociais partilhadas entre duas margens do Atlântico iluminam ainda questões cruciais a respeito do racismo estrutural que subsiste nos modos de enunciação de saberes, do Brasil à África do Sul. Explicitas nos trabalhos do músico Neo Muyanga e da antropóloga Kelly Gillespie – ambos originários da cidade de Johannesburg – as categorias que guiam a contenção do conhecimento dito “periférico” revelam aspectos aspectos de um mesmo problema. Afinal, pergunta Gillespie (em uma fala que poderia remeter às questões de qualquer artista latino-americana): “O que importa para os artistas e intelectuais africanos hoje? Produzir um conhecimento especificamente africano ou produzir um conhecimento global gerado a partir da África?”.

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Legenda: Primeiro encontro do Observatório do Sul, Goethe Institut, São Paulo (Foto: Cortesia Goethe Institut e Associação Cultural Videobrasil)

Há cerca de dois anos, Walter Mignolo – sociólogo argentino que integrou a terceira sessão do Observatório – antecipava a contestação dessas hierarquias ao afirmar à rede de notícias qatariana Al Jazeerah que, segundo essa lógica, “os nativos americanos têm sabedoria e os anglo-americanos ciência; os africanos têm experiência e os europeus filosofia; o Terceiro Mundo tem cultura e o Primeiro Mundo tem as ciências sociais, incluindo a antropologia que estuda as culturas do Terceiro Mundo; os chineses e indianos têm tradições, mas os europeus tem modernidade”. Se por um lado, tais questões se inscrevem em pólos de oposições binárias, por outro lado, apontam para diferentes projetos críticos nos quais o Sul global se apresenta como horizonte de ação, como se dá na produção de Raewyn Connell, Jean e John Comaroff, entre outros.

Se o estabelecimento dessa agenda de debates corre o risco de transformar o Sul em um território essencializado, delimitado por um processo de comodificação teórica, é necessário atentar para aquilo que ela oferece de fronteiriço. Justamente por isso, os encontros do Observatório tomam a noção de Sul como um lugar de fala, ou mais precisamente, um projeto prático e discursivo que oferece contornos e entradas às formas de conhecimento que escapam a certos cânones, ao mesmo tempo em que sugerem outras formas de narrar, outras relações com o tempo, regimes de historicidade ou cosmogonias.

Concebido a partir da pesquisa para a antologia de textos Perspectivas para Outras Geografias do Pensamento, que integra a coleção de livros lançada pelo 19o Festival, o programa do Observatório do Sul foi estruturado em quatro sessões que retomam os capítulos apresentados pela publicação: Contra-narrativas, Documentos e Manifestos, Geopolíticas do Conhecimento, Regionalismos e Descentramentos. Entre debates, discordancias e projetos comuns, os textos que integram esse dossiê foram elaborados pelos pesquisadores associados ao programa – Alex Fynn, Marina Guzzo, Cristina Bonfiglioli e Nathalia Lavigne – e abordam os temas trazidos pelos encontros a partir de suas perspectivas pessoais, também relacionadas às questões que fundamentam as suas pesquisas. 

As opiniões expressadas nos textos são de responsabilidade dos autores.