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Marina Guzzo
Postado em 05/11/2015 - 5:35
Observatório do Sul #3
Em mais um texto da série produzida durante o Observatório do Sul,  bailarina, performer e docente da UNIFESP Marina Guzzo fala sobre como pensar a ideia de manifesto no século 21 e como ela se aplica ao sul global
Marina Guzzo

Arte-manifesto, política-ação 

Entendido como uma forma de expressão, um posicionamento individual e coletivo, o manifesto é considerado gênero fundamental para a compreensão de políticas e práticas artísticas ao longo de todo o século 20. O Manifesto Futurista (1909) de Filippo Marinetti, caracteriza um dos primeiros usos desse formato pelas vanguardas, como gênero textual ou instrumento de legitimação artística. A partir de então, muitos outros artistas e movimentos adotaram essa estratégia para expressar poéticas e escolhas estéticas, fazendo com que esse gênero ganhasse relevância para a elaboração de uma postura crítica em relação ao fazer artístico, relacionando movimentos, práticas e obras à esfera política. Assim, dos modernistas aos contemporâneos, o manifesto abre caminho para diversas formas de articulação entre a arte e sociedade.

Mas como a ideia de manifesto se coloca para os artistas contemporâneos que operam a partir de um suposto Sul Global? O que seria um manifesto em pleno século 21? Que formatos esse gênero pode assumir? Um filme ou um jeito de fazer ópera negra podem ser um manifesto? Uma pesquisa sobre temas como o racismo em diversos países do Sul pode tomar a forma de manifesto?

É importante ressaltar, que os manifestos artísticos não se caracterizam somente pelo formato textual que normalmente se atribui. Uma ação, uma maneira de fazer, as estratégias de aproximação entre a obra e o público, seus caminhos de produção, os lugares escolhidos para mostrar a obra – tudo pode ganhar o estatuto de manifesto. Nesse sentido, o manifesto não seria apenas uma etapa de teorização de um tipo específico de fazer, mas a própria ação artística em si. Sob esse prisma, o manifesto pode se tornar um formato esgotado e facilmente reconhecido, perdendo a capacidade de engajar questões políticas em torno de sua forma.

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Manifesto Futurista (1909)

Chantal Mouffe nos ajuda a questionar, em Artistic Activism and Agonistic Space (2007), se as práticas artísticas ainda podem exercer um papel crítico em uma sociedade onde as diferenças entre a arte a propaganda tornam-se borradas, e onde artistas e trabalhadores culturais têm se tornado parte necessária (e engajada) da produção capitalista. Como podemos, no complexo cenário politico atual, transformar os posicionamentos assumidos em manifestos num objeto artístico, sem ser panfletário? Como obter potência política a partir de uma obra de arte? Ou ainda, como uma obra de arte se torna politicamente potente e capaz de resistir aos seus usos midiáticos?

Em Vigiar e Punir (1976), Michel Foucault afirma que onde há poder, há resistência. E as resistências são sempre várias, móveis e transitórias, estabelecem vínculos com as próprias relações de poder. A palavra resistência, porém, contém em si uma ambivalência prática: propõe uma oposição à ordem das coisas, rejeitando, ao mesmo tempo, o risco de subverter essa ordem. Ou seja, para o artista resistir à corrente democrática, à superexposição midiática e publicitária, e aos discursos do poder vigente é necessário dialogar com as próprias relações de mercado, com os poderes e políticas públicas e com as ordens de discursos do poder crítico e curatorial. Como afirma Jacques Rancière, em Será que a arte resiste a alguma coisa? (2007): “Sabemos que os artistas não são nem mais nem menos rebeldes que as demais categorias da população”.

Se a arte, assim como os manifestos, representa uma forma de resistência, então ao quê ela resiste? Contra o que constitui sua maneira de criação e possibilidade de ação? Como ela propõe, a partir de sua performatividade, um pensamento ou uma ação de resistência social?

Ora, a arte resiste de diversos modos: por um lado, a consistência da obra resiste à passagem do tempo; por outro, a ação que a produziu resiste à determinação do conceito. “Supõe-se que quem resiste ao tempo e ao conceito, naturalmente resiste aos poderes”, afirma Rancière. Resistir, no que diz respeito à arte, traz uma conotação política, relacionada ao poder.

A arte pode ser política a partir da crítica que estabelece em relação à realidade, questionando ou propondo possibilidades de ação e transformação das formas de existência. Nesse sentido, a arte tem o papel de testemunhar e co-construir os sentidos da vida no presente. Ela é entendida, ao mesmo tempo, como uma forma e um espaço de reflexão sobre as condições e necessidades coletivas, mesmo quando não se propõe a isso de maneira específica. Por ser uma manifestação complexa, ela possui uma rede de materialidades e sociabilidades que a sustentam e, a cada obra, constroem maneiras singulares de narrar, posicionar-se, recortar a realidade.

O trabalho da artista e curadora Gabi Ngcobo, presente na segunda sessão do Observatório do Sul, discute a questão da homossexualidade no continente africano. No filme Causality and Dilemmas, a chronology of human feelings and desires, produzido em 2014, Ngcobo volta o seu olhar ao Lago Rosa, no Senegal, para investigar e debater o tratamento dado a essa população no país. Diluído com as mudanças climáticas resultantes do aquecimento global, o rosa que dá o nome ao lago se torna, para Gabi, uma metáfora que permite discutir as relações entre aquilo que foi imposto pelo colonizador ao colonizado. Para ela, os “dilemas causais” que dão nome ao filme remetem à questão da “importação” da homofobia ao continente.

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Lago Rosa (Lac Rose), Senegal, objeto do filme de Gabi Ngcobo (2014)

Daniel Lima, que apresentou no Observatório o filme Futebol, entre outros, discute a questão do racismo no Brasil a partir de um conflito ocorrido em 2005 entre os jogadores Leandro Desábato, do time argentino Quilmes, e Grafite, do São Paulo. Autuado por ter chamado Grafite de “macaco”, o atleta argentino foi punido com dois dias na prisão. O caso migrou das páginas esportivas e relatórios policiais para os trabalhos do coletivo Frente 3 de Fevereiro, do qual Lima faz parte, em colaboração com o Grupo de Arte Callejero. Resultando em um conjunto de performances e intervenções em jogos do Brasil e da Argentina, o grupo propôs uma forma radical de discutir a experiência do racismo na sociedade brasileira.

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Performance Futebol, Frente 3 de Fevereiro (2005)

Diferente das vanguardas que usavam o manifesto no século 20, essas ações artísticas contrapõem-se aos caminhos que levaram diversas propostas de emancipação e utopia a serem incorporadas à logica capitalista, já que o potencial disruptivo daquelas vanguardas foi se transformado e sendo incorporado a uma longa lista de movimentos artísticos, bem como, às novas tendências disponíveis para consumo da arte. Artistas engajados, políticos, respondem a esse contexto tentando conciliar o fazer critico ao estético, muitas vezes marcado pelas relações institucionais e financeiras imbricadas na lógica capitalista ou neoliberal. Daí a pergunta: estariam os manifestos artísticos simplesmente aprisionados ao próprio ciclo de produção que acreditavam combater?

A contradição é, portanto, criada pelos trabalhos que articulam situações vividas de modo a sugerir outras formas de manifesto. Assim, a obra, e não somente o texto, tensionam as experiências sociais para inventar novas maneiras de olhar. Para Rancière, a “resistência” da arte é a tensão entre esses contrários, a tensão entre Apolo e Dionísio, a figura feliz do dissenso anulado, emoldurada pela figura de um belo deus, e o dissenso exacerbado pela figura de Dionísio, com seu furor exacerbado e “inumano”. Essa tensão possibilita uma aproximação com a própria humanidade, trazendo na experiência estética a promessa de uma “nova arte de viver”. A liberdade e a igualdade são sensíveis e não abstratas. E, essa resistência da arte define, portanto, uma política própria que não busca unir a comunidade com a forma abstrata da lei, mas sim com a experiência viva e sensível.

As opiniões expressadas nos textos são de responsabilidade dos autores.

Os outros dois textos já publicados, escritos por Sabrina Moura e Alex Flynn, podem ser lidos também no site da seLecT.