icon-plus
Postado em 24/09/2014 - 6:23
Ocupações dão asas à diversidade
Gustavo Fioratti

Coletivos artísticos, independentes e ativistas ocupam, fazem festas e promovem eventos culturais, muitas vezes clandestinos, debaixo de viadutos, em becos, terrenos baldios e prédios vazios do Centro Velho de São Paulo

Ocupa1_body

Legenda: A festa Puta Dei, com o lançamento da coleção Daspu na Copa, em 13 de junho, em que a companhia teatral Pessoal do Faroeste celebrou o Dia da Prostituição, na Rua do Triunfo, na região da Luz, com palavras de ordem levantadas por prostitutas para uma plateia com drinques na mão. (foto: Paulo D’Alessandro)

Se há alguma beleza no cenário que se revela em espaços urbanos abandonados, São Paulo tem beleza de sobra à noite na região central. Precisava só de gente que desbravasse o território, e uma trilha foi aberta nos cinco últimos anos por um dos mais significativos movimentos urbanos deste início de século. Sem nome por aqui, mas simpática às propostas de invasões dos squatters de Londres e de outras capitais europeias, uma rede de festas e eventos culturais passou a ocupar becos, terrenos baldios, prédios vazios, muitas vezes de forma clandestina. Chamaram atenção pela apropriação de referências punks e hippies. Atraíram mais gente. Criaram um novo cenário, capaz de sugerir nova relação com a cidade e também perturbar a ordem estabelecida pelas autoridades.

Foi nesse contexto que, no último aniversário de São Paulo, dia 25 de janeiro, um grupo de jovens portando caixas de som entrou em um túnel que liga as ruas Augusta e Amaral Gurgel, na região central. Aos domingos e feriados, a via fica fechada à circulação de carros, e assim o grupo decretou a liberdade daquele território para, de vez em quando, virar ponto de encontro de quem gosta de ouvir música e dançar. Deu certo, ganhou página no Facebook e o carinhoso apelido de Buraco da Minhoca. Sem cobrança de ingressos, as edições subsequentes da festa reuniram centenas de baladeiros e artistas. A edição de Carnaval foi especialmente forte. Mas, no fim de março, como já se esperava, começaram as encrencas: com a polícia, com a subprefeitura da Sé e com alguns moradores da região, que consideraram o Buraco da Minhoca irregular, barulhento e inseguro.

A festa, por ora, acabou. As ocupações de rua que o núcleo Capslock e outros grupos propuseram nesse modelo “foram sempre sem qualquer autorização da prefeitura”, diz o DJ Paulo Tessuto, um dos líderes da ocupação do Buraco da Minhoca. “Confesso que, após sucessivas decepções, acabei perdendo o tesão em ocupar aquele espaço. Muita mídia e muita polícia defendendo as pessoas que moram na região, praticando abuso de autoridade a todo momento”, diz. Tessuto, que iniciou sua carreira na Voodoohop, pioneira nesse estilo de festa-ocupação, diz que a gestão anterior da prefeitura era ainda menos afeita a diálogos.

Em 2008, o alemão Thomas Haferlach fez a primeira edição da festa em um bar do chamado Baixo Augusta. Alguns meses depois, decidiu ocupar o segundo andar de um prédio privado, até hoje com vários andares vazios, na Avenida São João. Sem muita preocupação com a falta de estrutura, mas com a anuência do proprietário, o organizador da Voodoo lançou um gênero, agregando logo na sequência outros profissionais DJs, VJs, artistas e performers. Tessuto acha que, embora tenha crescido estruturalmente, a Voodoo não perdeu a autenticidade. “Por ser um organismo de colaboração aberto à experimentação, a festa sofreu alterações diversas. Sempre há pessoas novas colaborando. No conteúdo, porém, creio que não tenha se alterado tanto assim.”

A nova cara da noite

No depoimento do DJ reside a chave para compreender como um estilo de noite se multiplicou com relativa velocidade. Ao agregar profissionais que atuam mais como sócios do que como funcionários, a Voodoo fez escola. Do núcleo também saiu Pilantröpóv Pausãnias, artista autônomo. Ainda hoje presente entre os agregados da Voodoo, ele vê nas festas uma possibilidade de interface entre entretenimento e rito. “Acho que, se você pensa a festa como uma plataforma em que a arte possa fugir dos cubos branco e preto, o propósito é a liberação de várias coisas, conexões, celebração”, define.

Pausãnias diz que esse mesmo movimento de ocupações já foi mais conciso, há cinco anos, quando ainda mobilizava pouca gente. “Acho que enfraqueceu e minguou um pouco. Se a galera tivesse sido mais generosa e aberta, teria continuado. Brigas internas fragmentaram uma cultura que ainda estava engatinhando. O que levou a essas brigas? Copyright: mil festas, e cada pessoa com a sua. Bom que dá asas para a diversidade, mas fragmenta as forças que poderiam ser usadas para gerar mais lucro”, defende. Lucro? Pois o que parece separar esse movimento de seus antepassados hippies ou punks, que vilipendiavam o capitalismo, é justamente a compreensão de que movimentos não precisam se opor ao sistema, mas podem brincar com ele, ganhando dinheiro, inclusive.

Se de fato houver um pensamento por trás da noite alternativa e marginal paulistana, ele não atua contra a corrente, mas faz questão de compreendê-la e de tirar partido. “Ninguém faz muita coisa sem poder participar da economia”, defende o artista, que durante a entrevista usava peruca e vestimentas femininas japonesas, ao estilo das gueixas. Nesse sentido, faz parte também de uma leitura sistêmica o compartilhamento de estratégias subversivas, como as ocupações empreendidas por movimentos sociais, especialmente o Movimento do Trabalhadores Sem Teto.

Ocupa2_body

Legenda: o Paribar, na Praça Dom José Gaspar, revive a efervescência que teve entre os anos 1950 e 1970 (foto: Paulo D’Alessandro)

Rua do Ouvidor

No dia 1º de maio, Pausãnias participou de uma invasão inspirada nas ações de grupos articulados para pressionar o poder público a investir em moradias. Cerca de 30 artistas plásticos, arquitetos, pesquisadores, músicos e agregados invadiram um prédio do Estado, na Rua do Ouvidor, próximo ao Vale do Anhangabaú. De contrapiso e fiação expostos e com vários vidros de janelas quebrados, o edifício estava abandonado havia quase dez anos, após o governo remover de lá um grupo de famílias organizado pelo MTST. Em seu interior, hoje e por tempo indefinido, os novos ocupantes se equipam com barracas, sofás, mesas de trabalho, colchões, luminárias e outros mobiliários. A intenção é construir uma espécie de centro cultural educativo que tenha, inclusive, a anuência, a participação e o auxílio do Estado, segundo dizem alguns dos organizadores presentes.

Para o arquiteto Felipe Melo Pissardo, as festas e clubes que ocuparam nesse contexto terrenos e imóveis no Centro de São Paulo não se propõem diretamente como movimentos políticos, mas acabam tendo fundamentos nessa raiz. “A partir de uma premissa que não tem a ver com a maneira tradicional de se fazer política, essas ocupações trazem novas leituras sobre a forma de habitar”, diz. “Assim, acabam alterando com uma ação a perspectiva política da população.” A vontade de participação é clara. Na noite de uma sexta-feira de junho, o grupo de artistas-ativistas Tanque Rosa Choque, reunido em um dos cômodos do edifício da Rua do Ouvidor, debatia o equipamento policial considerado por eles ostensivo na Praça Roosevelt. Cerca de dez jovens planejavam uma performance que durante toda uma tarde abraçasse o assunto.

Ocupy3_body

Legenda: Cerca de 30 artistas plásticos, arquitetos, pesquisadores, músicos e agregados ocupam prédio do Estado na Rua do Ouvidor, próxima ao Vale do Anhangabaú, com intenção de criar um centro cultural educativo. (foto: Paulo D’Alessandro)

Após a apropriação do prédio, os ocupantes da Ouvidor usaram o mailing da Voodoohop para anunciar a realização de uma festa e levantar fundos, a ser usados para a reparação estrutural do edifício, incluindo um novo sistema hidráulico. Numa noite de sábado, em maio, a fila de entrada dobrava o quarteirão do prédio. O grupo conseguiu levantar, com a venda de bebidas e ingressos, cerca de R$ 17 mil, dos quais cerca de R$ 7 mil foram gastos na própria infraestrutura da festa. Os outros R$ 10 mil tiveram destino compartilhado, e o grupo divulga que essa receita financiou, por exemplo, a instalação de uma nova caixa d’água, entre outros benefícios para o prédio.

Para Fabio Canova, assessor de gabinete da subprefeitura da Sé, os eventos que excedem o limite de 250 pessoas sem autorização da prefeitura podem lesar a população de São Paulo, principalmente em dois aspectos. Primeiro, aqueles que participam do evento sofrem riscos diversos, sendo o de incêndio o mais perigoso deles. Segundo, as diversas esferas do governo perdem receita, pois deixam de recolher os impostos relativos à cobrança de ingressos e venda de bebidas. De fato, na festa realizada na Rua do Ouvidor, a única forma de pagamento aceita era dinheiro vivo. Um sujeito que reclamou o direito de usar cartão na porta do prédio chegou a ser vaiado. Havia seguranças espalhados pelos três andares que abrigaram a festa, e um deles desencorajava a clientela a chegar perto das janelas, estruturas de aço e vidro que iam do chão ao teto. “Pode desabar”, dizia. Não houve acidentes.

Ocupy4_body

Legenda: A Trackers, espécie de clube que, além de festas, já ofereceu cursos relacionados à produção musical e à tenologia, sediou o Pop Porn, festival de performances e filmes eróticos, foi autuada pela prefeitura por falta de alvará, mas voltou a funcionar em uma semana. (foto: Paulo D’Alessandro)

Diálogo paradoxal

O poder público, a prefeitura especialmente, tem dialogado com essa turma de maneira paradoxal. Há estímulos como o convite para que artistas envolvidos participem da Virada Cultural e de outros eventos. Para setembro, está sendo planejada a segunda edição do SP na Rua, rave urbana que reuniu a maior parte dos coletivos que formam essa rede no Centro de São Paulo. Mas há também uma série de cobranças, muitas delas ainda a ser colocadas em prática. Em junho, a Trackers, uma semana após sediar o Pop Porn, festival de performances e filmes eróticos, foi autuada pela prefeitura por falta de alvará. Chegou a ter a porta bloqueada, reabriu em menos de uma semana, mas no dia 29 voltou a ser lacrada pela Prefeitura de SP.

Fato é que, por seu caráter conciliatório e abrangente, por ter agregado, inclusive, moradores de rua e usuários de crack em festas realizadas nas ruas, esse gênero de balada atraiu a atenção de artistas e curadores. Em 2012, a Voodoo foi responsável pela festa de encerramento da Bienal Internacional de São Paulo, realizada no topo de um edifício próximo à Câmara de Vereadores. Recentemente, ouviram-se também notícias de residências artísticas clandestinas na Galeria Formosa, antiga Escola Municipal de Bailado, situada na parte de baixo do Viaduto do Chá. Em nota, a prefeitura diz que “o espaço está desde o dia 2 de maio ocupado por um pequeno grupo que, em carta endereçada à Secretaria Municipal de Cultura, afirma que a invasão se justificaria pelo fato de o espaço estar ocioso, o que é totalmente falso”. Dessa forma, prossegue a nota, “a invasão da antiga Escola de Bailado é totalmente ilegítima e ilegal”.

O movimento de apropriação (talvez a palavra reapropriação aqui fosse mais correta) contaminou, inclusive, outros campos e palanques. Residente na região da Luz, a apelidada Cracolândia, a companhia teatral Pessoal do Faroeste realizou com a marca de roupa Daspu, em junho, uma festa para celebrar o Dia da Prostituição, com palavras de ordem levantadas por prostitutas a uma plateia cheia de gente com drinque na mão. “Nós somos prostitutas, e eu assumi minha profissão não faz um, dois ou três dias. Já faz 23 anos que presto serviços sexuais. Não vivo à margem da sociedade. Eu abomino quem fala que o nosso espaço de trabalho nas ruas é considerado boca do lixo. O nosso espaço de trabalho é comum”, dizia a prostituta Betânia Santos, com um microfone na mão. Cerveja e outras bebidas servidas em copos de plástico também só eram compradas com dinheiro vivo. E é assim que, em rede, um cenário estranho e rico vai desenhando, em São Paulo, uma nova forma de enxergar o espaço urbano.

*Reportagem especial publicada originalmente na edição #19