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Postado em 21/11/2011 - 8:30
Periferia no centro
Angélica de Moraes

Existe uma arte latino-americana? Existe um pensamento do sul? Em que medida essas perguntas são estereotipadas e falseiam nossa percepção? Confira as opiniões de três protagonistas de uma briga (ou sedução) cultural sem tréguas

Quem ganha a parada: eles ou nós? Quem conquista quem? Primeiro é preciso estabelecer as fronteiras entre cada um desses lados, claro. Mas elas continuam existindo? É precisamente aí que, em tempos globalizados e internéticos, a confusão se instala.

Para debater os contornos e consequências atuais do chamado diálogo Norte-Sul, seLecT convidou a artista multimeios cubano-americana Coco Fusco, o curador brasileiro Teixeira Coelho (Museu de Arte de São Paulo) e o curador venezuelano Luis Pérez-Oramas (30a Bienal de São Paulo e Departamento Latino-Americano do Museu de Arte Moderna de Nova York).

Coco Fusco tem na questão latina o fulcro do seu trabalho. Teixeira Coelho acha que latinidade é um gueto do qual os artistas devem fugir. Para Luis Pérez-Oramas, a relevância da arte é determinada por seu lugar de produção. Leia, a seguir, essas e muitas outras discordâncias que nos fazem pensar além fronteiras.

Pode-se falar de um pensamento do Sul? No que ele difere do conhecimento produzido nos centros hegemônicos (EUA e Europa)? Você pensa nisso ao realizar seu trabalho?

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Coco Fusco Vivemos e percebemos a questão do Sul às vezes como um peso desagradável ou assunto antropológico que não pertence ao campo artístico. Muitos fatores motivam esse repúdio: o formalismo, os gostos do mercado internacional, o desejo de ser ultramoderno. Mas há contradições e problemas sociais do Sul que nos fazem ser mais conscientes dos aspectos antidemocráticos do capitalismo e do socialismo. Eu tenho em mente essas diferenças todo o tempo. Muitos projetos meus exploram situações sociais e históricas dessas condições de vida do Sul.

Teixeira Coelho Isso soa como o eterno retorno de velhos hábitos do pensamento, num momento em que EUA e Europa não são mais tanto o centro hegemônico. Pelo menos em artes visuais somos parte do centro há algum tempo. Além disso, há mais de um Sul e, em cada um, milhares de outros. Epistemologia do Sul me parece outro nome para o gueto em que repetidamente nos querem encerrar. Meu ideal continua a ser o do internacionalismo sem marcas de fronteira.

Luis Pérez-Oramas É preciso manter presente uma certa consciência de nossa própria ancestralidade. Mas isto não é assunto exclusivo do Sul. Há conhecimentos ancestrais na Europa e na América do Norte que também estão relegados pelos sistemas lineares de aniquilação da memória. Aby Warburg, do coração cultural do Norte, proclamou e praticou a relevância das memórias ancestrais na compreensão dos sistemas artísticos. Se algo me surpreende negativamente hoje no mundo da arte contemporânea é a maneira como nós críticos, curadores, artistas, administradores institucionais e comunicadores assumimos cegamente a ideologia de aniquilação de memória, implícita na lógica do progresso tecnológico ilimitado. Hoje, para muitos, artista dos anos 80 ou 90 é artista pré-histórico.

A estética da resistência diante à imposição de modelos vindos do exterior, defendida por Marta Traba, é hoje página virada? A globalização nos levou a uma transculturação e à perda das identidades regionais?

Fusco Usar a cultura para resistir a a modelos do estrangeiro não tem muito sentido hoje em dia. Além disso, a transculturação não começou com a globalização mas com a colonização. O que a globalização fez foi acelerar esses processos por meio das novas tecnologias e acordos comerciais que facilitam o intercâmbio de produtos. Algumas tradições vão ser perdidas porque elas não são estáticas, elas também mudam. Creio que há até tradições que se gostaria de descartar, como aquelas impostas para facilitar o controle social.

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Teixeira Coelho Hoje, os tempos são mais de indignação diante de tudo que está aí do que de resistência; aquilo em nome do que se resistia, faliu. Resistência, hoje, quando existe, é ao que vem de dentro, vide Líbia, China etc. A identidade é ideia em xeque. Felizmente. Na fórmula irretocável do escritor Claudio Magris, as fronteiras sempre cobram seu tributo em sangue. As identidades também. O mundo fica cada vez menor e a intimidade entre ideias e saberes é inevitável e necessária. Os modelos não vêm mais do exterior porque quase nada mais é exterior (ou interior). Diferenças continuam a existir; mas as identidades estão todas em trânsito.

Oramas Marta Traba tinha razão em muitos de seus diagnósticos gerais e frequentemente errou em muitas escolhas artísticas. Não há história da arte que não seja topológica, migrante. A imposição da arte contemporânea como estilo internacional é mercadológica, no gosto das elites culturais. Ignora a realidade dos contextos locais. Uma das tentativas frustradas da ideologia moderna consistiu no estabelecimento de uma só temporalidade, exclusivamente moderna. Daí deriva o terror do anacronismo, tabu intelectual que mortifica tanto historiador, crítico e diretor de museu. Esse ter ror produziu desvinculação entre práticas de arte contemporânea e artes populares. A temporalidade não é una nem única. Se a arte está convocada a ser contemporânea, ou seja, prática que se estabelece com seu tempo, é inconcebível que se manifeste como forma única e estilo internacional.

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Existe uma arte latino-americana? Qual é a especificidade dela?

Fusco Há muita produção artística na América Latina e muitas propostas sobre o que seria latino-americano na arte. Propostas artísticas que enfocam o resgate e a reinterpretação das tradições pré-colombianas, a reivindicação do popular, a investigação narrativa da vida dos pobres e o realismo mágico, entre outras. Também há pesquisas da modernidade, da pós-modernidade e até da desmodernidade latino-americana na arte e na literatura. Enfim, há muitas maneiras de abordar o tema.

Teixeira Coelho A especificidade é de mero indicador de algo acidental. “Latino-americano” virou ícone de uma essência, o que é tragicômico. Uma exposição do MoMA dedicada à arte latino-americana, nos anos 80, foi compreensivelmente recusada por artistas brasileiros e outros, que responderam: quando nos convidarem como artistas, não como artistas latino-americanos, e para uma exposição de arte, não de arte latino-americana, iremos com prazer. “Quando artistas recusam o rótulo, é preciso parar e pensar” O recurso ao território como explicação é apenas questão tática, não instrumento da verdade. O r a m a s Existe arte produzida na América Latina e isso é tão complexo e específico como quem a produz. Seria importante pensar a arte ou a produção artística em termos relacionais, como todo processo de produção de sentido. Pensar com igual intensidade a relevância da arte como determinada por seu lugar de produção tanto como a relevância do lugar sendo determinada pela arte que se produz ali. Existem tantas formas de arte quantas é possível produzir.

Os estereótipos de leitura da produção latina são de responsabilidade exclusiva das plateias do Norte? Em que medida o Sul contribui para reforçar ou combater essas reduções de percepção?

Fusco Os estereótipos de leitura surgem de todas as partes! Dentro do contexto latino-americano, há muitos governos que utilizam a cultura para fazer relações internacionais e para reforçar, dentro do próprio território, a ideia da identidade nacional. Essa utilização instrumentalista da cultura não só depende de muitos estereótipos como cria vários deles.

Teixeira Coelho O Sul contribuiu para isso ao longo do século 20, entre os anos 1910 e 1970. Foi quase um reivindicar-se periferia. Havia algo de masoquismo nessa atitude e, como quase sempre nesses casos, muita arrogância, muita soberba: éramos diferentes e especiais. O Centro exigia esse exotismo e muitos por aqui, sobretudo entre os intelectuais, entregavam a mercadoria pedida

Oramas A existência de relações de ignorância e dominação, exclusão e obstrução entre formas culturais centrais em sociedades do Atlântico Norte e formas culturais de sociedades europeias, mediterrâneas e balcânicas, por exemplo, relativiza esta ideia simplista de Norte e Sul. Nas narrativas canônicas da arte moderna, a modernidade grega ou romana é tão ignorada ou talvez até mais do que a modernidade brasileira ou venezuelana. Há constelações culturais extremamente complexas ao Norte e ao Sul e a Leste e Oeste do planeta. As produções artísticas são relevantes localmente e só chegam a ser universalmente significativas por extensão, seja por apropriação, assimilação, disseminação ou deslocamento. É responsabilidade dos cenários locais produzir modelos de explicação histórica para elas. É responsabilidade das cenas dominantes integrar essas narrativas, como filtros de seus próprios relatos, particularmente se têm pretensões de universalidade.

Por que, a exemplo da União Europeia, não conseguimos emplacar na América Latina nenhum modelo de transnacionalidade (Alalc, Aladi, Mercosul)?

Fusco Para mim, a transculturação é um processo e não um modelo. Existem muitos processos de transculturação na América Latina.

Teixeira Coelho Primeiro, porque aqui não existem estadistas mas, quase apenas, figuras públicas minúsculas ou grotescas movidas a poder ou dinheiro. As ideias maiores, mais generosas e amplas, ainda não têm vez aqui. Alguns dirão que não estamos no ponto econômico e político para isso. O fato é que vetores ideológicos primários e carcomidos são periodicamente ressuscitados para produzir apenas divisão e animosidade. A ideia de construção não vigora na área, o motor da política por aqui ainda é a destruição. A região ainda é apenas reativa, reacionariamente reativa, como descrevia Nietzsche, e não propositiva.

Oramas A pergunta não pode ser respondida exclusivamente no âmbito da arte. Obviamente somos vítimas das ideologias nacionais e pós-nacionais. Muitas delas deram lugar na América Latina a projetos relativamente falidos.

Publicado originalmente na edição impressa #2.