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Postado em 04/11/2011 - 6:52
Progresso onde, minha querida avó?
Rene de Paula

Com iPads na mão continuamos acacianos, sebastianistas e messiânicos, driblando olimpicamente os bodes pretos no meio da sala coberta de lama arcaica.

Rene

Todo domingo levamos minha avó para almoçar. Somos vizinhos e o restaurante, também. Felizes e contentes caminhamos com a velhota até o restaurante da esquina, comemos, rimos e voltamos, um ritual de prazeres singelos que rende sempre uma foto gostosa, flagrada com o meu celular. Neste domingo mostrei a última foto na tela do meu smartphone e a velhinha (97!), inconformada com as modernidades, me disse solenemente: “Você acompanha o progresso do mundo”.

Touché. A vovó continua sagaz, mas por sorte não percebe o quanto essa história de progresso me intriga. Vejam se o meu raciocínio faz algum sentido: para mim, tecnologia não faz sentido. Quem faz e dá sentido é gente, e gente (minha segunda tese neoantropofágica) adota a tecnologia à sua imagem e semelhança. Vou mais longe (ou mais para trás, ou mais para dentro, nem sei): nosso retrato mais fiel é a cara que damos à tecnologia. Quanto mais eu vejo o encanto brasileiro com a social media mais eu penso: reinventamos Dorian Gray.

Para dar um pouco de lastro às minhas inquietações, vale dizer que estou nessa área interativa faz 15 anos e sempre no mesmo lugar: no front. E, curiosamente, o front são justamente os bastidores, o lado B da internet, um mundo bem mais complicado do que a internet cor-de-rosa com a qual sonhamos tanto. E eu me pergunto por que sonhamos uma internet cor-de-rosa? Por que teses e artigos e palestras me lembram Pero Vaz de Caminha, que, numa fase pré-Conar, alardeou um paraíso que, em se plantando, tudo dava? Por que encontro um Antônio Conselheiro em cada palco, convidando a todos para uma utopia anticapitalista? Eu juro: já vi evento de digital em que o mestre de cerimônias conclamava a plateia comovida a se abraçar. Olhei pro marmanjo ao meu lado e disse: “Nem pense”. Quem diria que um evento sobre tecnologia digital lembraria uma celebração religiosa, onde fiéis, encantados com um ministro iluminado, fortalecem sua fé num mundo que não existe? Progresso onde, minha querida avó?

Voltemos à nossa personagem quase centenária. Olhando seu close-up, ela diz: “No espelho não sou assim tão velha”. Qual sua foto mais fiel, então? Ela me mostrou outro dia: seu RG de 50 anos atrás. Aquela, sim, se parece com o espelho. O tal progresso do mundo talvez não seja assim tão estranho para a minha avó: com iPads na mão continuamos acacianos, sebastianistas e messiânicos, driblando olimpicamente os bodes pretos no meio da sala coberta de lama arcaica.

Rene de Paula Jr. descobriu a internet em 1995 e se encantou. De agência em agência, vem compartilhando experiências sobre o impacto da internet.

*Publicado originalmente na edição impressa, seLeCt #2.