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Inominável (2018), de Jonas van Holanda (Foto: Cortesia do Artista)
Postado em 27/01/2020 - 9:57
Quando falamos no diabo
Como artistas e cosmovisões indígenas ajudam na elaboração e ressignificação das racialidades e performatividades de gênero
Beatriz Lemos

Tentador, demônio, satã, serpente, anjo mau, cornudo, maligno, mau, chifrudo, malvado, tinhoso, cão, tendeiro, demônio, satanás, príncipe das trevas (…)

O Inominável (2017), obra em áudio de Jonas van Holanda, evoca o diabo para contestar a privação de elaborações de desvios imposta a corpos do sul (Foto: Cortesia do Artista)

O Inominável (2017), obra de Jonas van Holanda, traz o nome do diabo em repetição contínua como um processo de invocação divina, pois toda vez que não podemos falar seu nome, é uma ferida que infecciona, um corpo que desaparece. Trata-se de uma tática de rompimento das fantasias coloniais que moldaram nossas subjetividades e desejos baseados na captura, que, pela ausência de repertório, priva corpos ao Sul na elaboração de desvios. Se em nome de um deus a máquina colonial ganha eterna autorização para sua missão etnocida, é em nome do diabo que o artista transmuta sua existência, assume a captura e a transforma, autorizando o que é não dito, proibido, execrado. A evocação acompanha um longo processo de mudança de voz e transição de gênero, denunciando um corpo que carrega em si a quebra. A obra em áudio, realizada em residência na Bolívia, torna-se uma cacofonia, overdose de palavras em distintos idiomas e mitologias que fazem referência ao conceito de personificação do mal – nossa herança do invasor – numa visão euro-cristã binária e de juízo entre bem e mal; palavras que tensionam racismo, misoginia e, principalmente, o recorte da monstruosidade.

Assim, o diabo representaria o acesso a uma autonomia da subjetividade e a falha da colonialidade corpórea, dispositivos operados pela dissidência e por corpos lidos socialmente como mulheres. Como um conjuro, trago o trabalho de Jonas ao lado das entidades femininas da pombajira, da cigana, das sereias e iaras para nos acompanhar nestas notas de reflexão sobre aqueles que negociam trânsitos nas encruzilhadas.

Para pensar feminismos
No decorrer das experiências dos grupos de estudos e das residências realizadas pela plataforma Lastro – Intercâmbios Livres em Arte,  entendemos que imaginar feminismos hoje, na América Latina, torna-se impossível se não há a elaboração de um pensamento sistêmico e radical de rompimento com padrões universais de conhecimento e existência, em uma perspectiva que articule raça, etnia, gênero, classe, sexualidade, capacidade e geopolítica como pilares centrais de definição. As insurgências que se manifestam na descolonização dos corpos e do inconsciente configuram-se na única saída possível para a reconstrução de uma genealogia comum entre diferentes tempos-espaços. É necessário, assim, um feminismo plural que reconheça singularidades e que, segundo a filósofa feminista dominicana Yuderkys Espinosa, no texto De Por Qué Es Necesario un Feminismo Descolonial: Diferenciación, Dominación Co-constitutiva de la Modernidad Occidental y el Fin de la Política de Identidad,  “se faça cúmplice (…) e que pontue a possibilidade de outros significados da vida em comunidade e reelabore os horizontes de utopia conhecidos universalmente”.

Foi no trânsito dos corpos neste território de Abya Yala (Terra Madura, ou Terra em Florescimento, na língua do povo Kuna, e também sinônimo de América) que entendemos na pele os dispositivos imprescindíveis para a retomada de histórias ainda não contadas que possibilitem a reinvenção de epistemologias e uma nova cartografia priorizando biomas naturais e contextos específicos, em vez de mapas e fronteiras demarcadas. Com os corpos atravessados pelas peculiaridades locais, acessamos um lugar de questionamento incisivo sobre procedimentos coloniais de coerção e apagamento, o que nos aportou em estratégias radicais de aprendizado que possam vir a romper com o binarismo cognitivo entre teoria e prática. Tal quebra de paradigma tem início com a invalidação de um feminismo único, de concepção universalista, estabelecido em bases brancas-cis-europeias, para a legitimação de iniciativas de/para/por mulheres que há tempos fomentam a política da autonomia em territórios do Sul global, criando outras concepções de movimento e luta, epistemologias e metodologias de reivindicação.

Para nós, fez parte imprescindível da elaboração desses feminismos, que exigem epistemologias não hegemônicas, duas concepções de existências: o gênero mulher enquanto conceito forjado em vias de um controle social e religioso, tendo em vista cosmologias ameríndias que não fazem distinção entre noção de tempo circular, natureza e seres vivos; e a identidade afro-indígena enquanto processo político identitário a ser vivenciado em sua completude continental, ao reconhecer ancestralidades fluidas e as vivências da encruzilhada tão sabiamente descritas por Gloria Anzalduá, teórica norte-americana de origem chicana, em Como Domar uma Língua Selvagem, como identidades fronteiriças que “superam a tradição do silêncio”.

Em viagem
As residências Lastro compartilham processos coletivos de pesquisa e estudo, dispondo-se à porosidade dos corpos ao contexto e ao cotidiano de viagem. Tendo em vista esse território inventado, delineado por parâmetros coloniais, onde o patriarcado se faz presente na constituição do sujeito, as identidades que fogem do aprisionamento da normatividade se veem incisivamente violentadas por inúmeras formas de aversões como misoginia, lesbofobia, sapatãofobia, transfobia, travestifobia, que nada mais são que mecanismos de medo empregados em nome de uma pretensa ordem e controle, regidos pela heteronormatividade e heterossexualidade. Neste lugar continental, são testemunhados altos índices de feminicídio, silenciamentos e impedimentos às identidades que performam feminilidades e aos corpos dissidentes. Encarados como corpos de descarte, tendo os tensionamentos entre raça, classe e gênero, nos provocamos com o questionamento: como produzir, em meio ao vórtice, narrativas de vida, de cura e cuidado, acessando a inteligentibilidade ancestral do corpo que vislumbre caminhos de fugitividades?

Como Transpor Abismos (2016), de Mariana Guimarães, tensiona relações entre tradição e autonomia na prática do bordado indígena

 

Ao trazer à discussão as experiências vividas na Bolívia e na Guatemala – países que possuem populações majoritariamente indígenas e, não por acaso, também enfrentam os maiores índices de precariedade do continente –, o pensamento e as cosmovisões indígenas tornam-se condutores do trajeto e nos ajudam na elaboração e na ressignificação das racialidades e performatividades de gênero. Os trabalhos desenvolvidos durante essas residências ou como desdobramentos desses processos muito nos dizem sobre as contradições inerentes às obsessões coloniais que subjugam subjetividades, fazendo refletir sobre as existências que quebram a norma e aquelas não autorizadas ao gozo da autonomia e da liberdade. A invocação ao diabo de Jonas van Holanda é parte desse desvio, que se manifesta como afirmação à monstruosidade em diálogo com instâncias possíveis de relação ao nível corpóreo com o divino.

Em Como Transpor Abismos (2016), de Mariana Guimarães, os tensionamentos entre tradição e autonomia se fazem reais no discurso de mulheres indígenas que têm a prática do bordado como única alternativa, e que, assim, são marcadas pelos limites da violência e da violação. A artista pesquisa o bordado em diferentes países com o intuito de criar outras abordagens às práticas têxteis que não o aprisionamento dos lugares pretensamente destinados à mulher – a casa e o privado –, que tragam possibilidades de deslocamento e não se vinculem às narrativas de opressão. O bordado é uma linguagem que, junto ao sistema patriarcal, forjou o corpo feminino em corpo dócil, contribuindo para a domesticação dos corpos. Na Guatemala, a contradição que habita essa cultura é uma estética presente em todo o país, muito conectada com a cosmovisão maia, mas que encoberta um dos maiores índices de feminicídio do mundo. E, como numa metáfora milenar do silenciamento e da submissão, são as mulheres, que tradicionalmente exercem essa prática, as mais violentadas. Dessa forma, a obra, que se materializa enquanto instalação de um grande livro bordado, carrega o desafio de denúncia do cotidiano.

Em Atravessia (2018), Fernanda Porto e Laura Berbert proporcionam um percurso infinito a partir da justaposição de imagens fotográficas de um caminho percorrido por elas durante a estada na Ilha do Sol, no Lago Titicaca. No primeiro dia do ano de 2017, as artistas cruzaram a Rota Sagrada da Eternidade do Sol – caminho que liga o norte e o sul da ilha –, numa experimentação de limite do corpo, do tempo e da intuição, exercitando polaridades inerentes aos conflitos de alteridade. A soma dessas imagens da ilha produz um caminho sem pontos fixos de partida e chegada.

As residências em circulares constantes produziram reflexões a respeito das negociações forçosas a determinados corpos em movimento, negociatas que se iniciam muitas vezes forçosamente e em alturas desiguais. E, embora díspares, ainda como estratégias de fuga ou pertencimento, seguimos em trânsito.