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Postado em 03/05/2012 - 5:25
Quanto pesa uma vida sem fio?
Giselle Beiguelman

Artistas questionam em suas obras as ambivalências da era da mobilidade, colocando a voracidade da indústria de celulares na berlinda e revelando a materialidade das redes

Celulares

Legenda: Os números impressionantes instigaram as séries de Chris Jordan Intolerable Beauty: Portraits of American Mass Consumption (2003 -2005) (Foto: Chris Jordan, Cell Phones #2, Atlanta, 2005)

Todos os anos são descartados 20 milhões de toneladas de eletrônicos. Isso de acordo com as estatísticas mais otimistas. As mais pessimistas estimam que são 50 milhões de toneladas, o suficiente para encher 125 mil Boeings 747 com traquitanas de todos os tipos. Diante desse quadro, não seria exagero dizer que nada parece ser mais urgente para alguns artistas do que colocar em discussão as dimensões políticas e sociais da economia do hardware daquilo que consumimos.

Atenção especial tem sido dada aos dispositivos móveis, e não por acaso. Em nenhuma área do universo das telecomunicações a velocidade e a voracidade das transformações são tão visíveis como na indústria dos celulares. Basta lembrar que para os 7 bilhões de habitantes do planeta existem mais de 5 bilhões de celulares em uso e que a cada segundo quatro aparelhos são descartados. Calcula-se que, em média, não se fica com o mesmo equipamento nem 22 meses.

Esses números impressionantes instigaram as séries de Chris Jordan Intolerable Beauty: Portraits of American Mass Consumption (2003 -2005) e Running the Numbers: An American Self-Portrait (2006- ). Na primeira, os celulares e seus acessórios são os protagonistas. Na segunda, eles são um dos destaques, mas outros ícones da cultura americana, como cartões de crédito, carros, sacos plásticos etc. também estão presentes. Vale frisar com relação a Jordan, no que diz respeito a Running the Numbers, que ele é um artista extremamente bem-sucedido em termos de repercussão na internet, mas que tem trabalhado de forma muito elegante e criativa os recursos de visualização na tela do computador, pois o que se vê com e sem zoom são duas coisas totalmente distintas. E olhando particularmente as imagens dos celulares é impossível não perguntar: para onde vai tudo isso? E o que nos leva a consumir tanto?

Uma resposta fácil seria dizer que tudo é fruto da sedução do marketing e da propaganda. Mas isso implicaria ignorar a complexidade de viver no século 21. Afinal, mostra o antropólogo argentino radicado no México Néstor Canclini em um instigante ensaio (Consumidores e Cidadãos), as novas tecnologias de comunicação expandiram a noção de cidadania, incorporando práticas de consumo ao seu exercício.

Canclini falava de tevê a cabo, mas podemos atualizar a discussão. O direito de acesso à internet ilustra bem essa relação, uma vez que inclui a necessidade não só de acesso à infraestrutura, mas também a uma gama de produtos comerciais e equipamentos de conexão. Esses equipamentos, vale lembrar aqui, são cada vez mais os dispositivos móveis, sugerindo que o indivíduo socialmente excluído, hoje, é o imóvel. Essa é uma questão extremamente relevante em economias emergentes como Brasil, China e Índia, que migraram para a cultura de rede, pulando o momento da comunicação em grande escala via linhas fixas. Nesses países, as indústrias de móveis desempenha um papel importante não só no campo das comunicações, mas também na rápida dinâmica da obsolescência programada que anima esse mercado.

Vencer um jogo sem ganhadores

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Legenda: Mobile Crash, de Lucas Bambozzi, coloca em discussão os jogos da obsolescência programada, inserindo o público ativamente em uma cadeira produtiva da qual ele é sempre alienado (Foto: Cortesia do artista)

Mobile Crash (2009), do artista brasileiro Lucas Bambozzi, problematiza sem paternalismo esse contexto social. Trata-se de uma instalação baseada em quatro projeções interativas que reagem à presença dos visitantes. As projeções mostram em uma série de vídeos curtos dispositivos eletrônicos, principalmente telefones celulares, sendo esmagados por um martelo. Editados em uma sequência rítmica e organizados como um jogo de 12 níveis, os vídeos tornam-se cada vez mais ruidosos e velozes, em resposta à intensidade dos gestos do público. 

Quanto mais nos movemos, mais rapidamente e com mais barulho símbolos de luxo são destruídos e transformados em lixo. Sem vencer partida alguma, fica-se com uma sensação de jogo ganho. Uma espécie de conquista do corpo sobre a velocidade do tempo febril da indústria, triunfo da vontade do indivíduo sobre a direção e o ritmo do processo. O resultado é uma experiência intensa e catártica, na qual a consciência social parece emergir da súbita possibilidade de participação ativa no procedimento de descarte dos dispositivos. Uma consciência, no entanto, mais próxima do estado de transe, não discursivo, e totalmente desvinculada, ou melhor, alforriada, de seu circuito comercial original.

Celulares, não custa lembrar, são muito mais que meros telefones sem fio com grande alcance. Estamos falando de equipamentos que se definem pela integração entre redes de acesso à internet em alta velocidade, transmissão e recepção de vídeos, participação em redes sociais, entre outras coisas, e tudo isso combinado com serviços e recursos locativos. São tanto um dos mais poderosos dispositivos de rastreamento e invasão da privacidade já inventados como potencializadores de outras formas de criatividade e ação política também jamais pensadas. Mas sua dimensão política não se esgota no seu uso. Há toda uma geopolítica dos dados e dos equipamentos que demanda uma reflexão em profundidade ainda por ser feita.

Tantalum Memorial (2008-2010), de Graham Harwood, Richard Wright e Matsuko Yokoji, aborda a cultura da mobilidade justamente a partir desse ângulo, fazendo uma homenagem às vítimas das batalhas pela posse das minas de coltan (ou tantalita), um dos grandes pivôs da longa guerra civil que matou, de 1998 até hoje, mais de 6 milhões de pessoas na República do Congo. 

Esse minério, uma mistura de columbita e tantalita, é um verdadeiro “ouro azul” e o Congo, o seu maior produtor natural. Sem ele não se fabrica nenhum celular, não importa a marca. Ele é essencial, por sua alta resistência térmica, para a produção do capacitor – peça que controla o fluxo de eletricidade e basicamente impede que seu aparelho derreta. As milícias do Congo e de Ruanda se organizam em torno das partes conflitantes e o tráfico do minério é feito em escala internacional até chegar às grandes fabricantes de celulares que compramos.

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Legenda: Tantalum Memorial, obra de Harwood, Wrigth e Yokoji, faz uma homenagem às vítimas das guerras pela posse das minas de tantalina, minério essencial para a fabricação de celulares. (Imagem: divulgação)

Em Tantalum Memorial, uma estação livre de telefone conecta refugiados congoleses em Londres com redes informais de comunicação, organizadas nas ruas do Congo. Estimula-se que as pessoas contem histórias e reportem o que está acontecendo à sua volta. No espaço expositivo, uma réplica de uma central telefônica automática do tipo eletromecânico (sistema Strowger) domina o ambiente. 

A cada vez que um depoimento é recebido pela rede de telefonia social do projeto, interruptores são acionados. O sistema automático Strowger foi usado desde sua invenção, no fim do século 19, até os anos 1990, quando se passou a usar linhas digitais. Seu grande avanço foi dispensar o intermediário humano e ligar diretamente o emissor ao receptor telefônico.

Afirma-se que Almon B. Strowger, que era agente funerário, desenvolveu sua ideia porque desconfiava que as telefonistas desviavam suas ligações para um concorrente. Verdade ou não, seu sistema foi o paradigma das redes de comunicação contemporâneas. Ao recuperá-lo como elemento de mediação do Tantalum Memorial, Harwood Wright e Yokoji dão presença a essa rede de conversas, ao mesmo tempo que fazem pensar na materialidade do que as redes têm de mais brutal.

*Publicado originalmente na edição impressa #5.