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Postado em 01/02/2013 - 3:08
Que fim levou a reportagem?
Angélica de Moraes

Geneton Moraes Neto, Mario Cesar Carvalho e Luiz Cláudio Cunha discutem a situação da reportagem em tempos de internet, dossiês e acesso remoto às fontes

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Legenda: Este Curto-Circuito foi publicado originalmente na edição impressa #8. (Reprodução)

O clássico exemplo da reportagem mais bem conduzida da história do jornalismo, o Caso Watergate, nos EUA, está a anos-luz de distância da performance da maior parte da mídia brasileira no escândalo do mensalão. Em Washington, os fatos e provas foram se acumulando como resultado de persistente investigação jornalística. Aqui, boa parte do material explosivo manuseado pelos juízes do Supremo Tribunal Federal passou ao largo da reportagem e fluiu de investigações e análises do próprio Poder Judiciário. A reportagem investigativa está em extinção no Brasil? O público não é bem informado sobre o mundo-cão dos bastidores do poder?

seLecT ouviu três experientes repórteres para discutir o tema. Geneton Moraes Neto, entre outras façanhas, arrancou declarações explosivas para a Globo News (canal por assinatura da TV Globo) de dois generais da ditadura: Newton Cruz e Leônidas Pires Gonçalves, este o ex-comandante do DOI-Codi do I Exército, no Rio de Janeiro, na época mais sanguinária do governo Ernesto Geisel (1974-1977). Mario Cesar Carvalho realizou para o jornal Folha de S.Paulo uma série de reportagens nas quais radiografa as estripulias fiscais e aduaneiras do ex-banqueiro, suposto mecenas das artes e atual presidiário Edemar Cid Ferreira.

Luiz Cláudio Cunha conquistou, em 1979, um Prêmio Esso pelo conjunto de reportagens em que revelou a existência de um macabro intercâmbio entre as ditaduras do Cone Sul (entre elas Argentina, Uruguai, Chile e Brasil) para o sequestro, tortura e morte de refugiados políticos desses países. São eles que analisam, nestes tempos de muitos dossiês envenenados oferecidos grátis às redações, se o ofício da reportagem está em extinção.

O jornalismo investigativo tem futuro ou é um luxo do passado?

Geneton Moraes Neto
Não pode existir jornalista mais identificado com o “jornalismo investigativo” do que Carl Bernstein, que, em parceria com Bob Woodward, publicou no Washington Post uma série de reportagens, o Caso Watergate, que provocou a renúncia de um presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Bernstein é o primeiro a fazer restrições ao rótulo de “jornalismo investigativo”. Passo a palavra a ele: “Não acredito que o jornalismo investigativo seja diferente do resto do jornalismo. Jornalismo é persistência, é ser um bom ouvinte, é respeitar quem você aborda, é ter tempo”. Penso que Bernstein tem razão. O jornalismo, sem adjetivo, já é, por natureza, investigativo. Mas, se você me perguntar se a grande reportagem parece um luxo do passado, direi que sim. Feitas as contas, somos todos órfãos dos anos de ouro da revista Realidade: grandes pautas, grandes textos, grandes reportagens. Os tempos mudaram para pior.

Mario Cesar Carvalho
Infelizmente, não tenho bola de cristal para saber. O que sei é que esse gênero custa muito caro e, com a crise econômica pela qual a imprensa passa, ficou para segundo plano. Mesmo assim, o Brasil tem uma tradição incrível de investigação. É só ver os casos de Fernando Collor, de Antonio Palocci e, para ficar na esfera da arte, de Edemar Cid Ferreira.

Só para se ter uma ideia de custo, a reportagem em que descobri que as obras mais caras da coleção de Edemar (Basquiat, Léger e Lichtenstein, entre outros) estavam fora do País demorou cerca de cinco meses para ser feita. A Polícia Federal mal falava em sumiço de obras do País no inquérito sobre Edemar antes dessa reportagem. É óbvio que fiz dezenas de outros textos nesse período, mas trabalhar cinco meses num tema é um prazo cada vez mais raro para a produção de uma reportagem.

Luiz Cláudio Cunha Jornalismo investigativo é pleonasmo, porque o bom jornalismo é sempre investigativo. Talvez esse tipo de reportagem que vai mais fundo nos fatos possa ser chamado de jornalismo intensivo. Porque ele resulta de uma concentração maciça do repórter em uma única pauta. Minha matéria sobre o sequestro dos uruguaios prolongou-se por 21 meses, quase dois anos. Foram 630 dias, 86 semanas. Acho que isso não se repete na imprensa brasileira nunca mais. Eu trabalhava na sucursal da revista Veja em Porto Alegre e estava totalmente dedicado ao assunto. Estava liberado pela direção da revista de cobrir o dia a dia, que tira o foco e a intensidade do trabalho investigativo. Não era época ainda do Google, que dá a falsa impressão de que o mundo inteiro está ao alcance de seus dedos. A essência do jornalismo exige que se ponha o pé na rua. Gay Talese, o mestre do new journalism, afirma que o jornalismo atual está ficando preguiçoso.

O dossiê substituiu a investigação do repórter? O caso Cachoeira, por exemplo, surgiu de dossiês. Isso coloca em risco a credibilidade do jornalismo?

Moraes Neto Não acredito que dossiês sejam necessariamente um mal. Uma denúncia que chega de graça à redação pode ter o efeito de uma bomba atômica. Há um perigo, claro: o de o jornalismo ser transformado em massa de manobra de disputas políticas. Qual é a saída? Usar o dossiê como ponto de partida para uma apuração, não como produto acabado. Não é fácil. O repórter pode enfrentar dilemas quando vive uma situação dessas. Mas há muitos casos de matérias que foram literalmente oferecidas a jornais e revistas e tiveram efeito devastador. A entrevista de Pedro Collor – em que denunciava o esquema PC – é um exemplo, entre tantos. Quem não publicaria?

Carvalho O dossiê é uma peça que existe na imprensa brasileira desde o fim do século 19, pelo que sei. É parte da disputa política. Pode até se converter em jornalismo, desde que tenha sido exaustivamente checado, rechecado e desidratado de todo e qualquer viés político. O dossiê em estado puro, sem esse trabalho de desidratação, não deve ser publicado como jornalismo. É propaganda. cunha Para mim, o foco preferencial do jornalismo são as pessoas que têm a coragem de dizer “não”, a coragem de enfrentar desafios, de contrariar interesses, de rebater dogmas, de fazer as perguntas mais impertinentes, mais abusadas, mais necessárias. Paulo Totti, grande jornalista com quem tive a honra de trabalhar, disse certa vez que “a função do repórter é a única que vai sobreviver no jornalismo do futuro. Sempre vamos precisar de alguém que pergunte”. Totti disse e eu completo: o o importante – ontem, hoje e sempre – é duvidar e perguntar.

A reportagem presencial, cara a cara com o entrevistado ou no local do fato, é prática em desuso? Quais as consequências disso para a qualidade da informação? Estamos vivendo hoje um jornalismo de controle remoto?

Moraes Neto Nada substitui a reportagem presencial. A qualidade da informação apurada olho no olho é sempre superior. Mas há casos em que a única alternativa pode ser o telefone ou o e-mail. Um exemplo: eu sabia que Carlos Drummond de Andrade evitava o contato pessoal, mas gostava de falar ao telefone. Era, como me disse um de seus amigos, “um ser eminentemente telefônico”. Preparei um questionário de cerca de 60 perguntas. Comecei a gravar quando ele disse “alô”. Convenci o poeta a me dar a entrevista por telefone. E ele falou longamente. A transcrição da entrevista-telefonema rendeu cerca de 90 páginas do livro Dossiê Drummond. Detalhe: Drummond morreu 17 dias depois da gravação. A entrevista virou uma espécie de testamento do poeta. Indiscutivelmente, é um documento sobre ele. Se eu tivesse desqualificado o telefone como instrumento de apuração, não teria obtido a última grande entrevista do maior poeta brasileiro.

Carvalho Não dá para generalizar sobre a reportagem presencial. Depende do caso. Há casos em que o contexto é tudo, é a própria reportagem. Mas há casos de excelentes reportagens feitas por telefone ou e-mail. No caso de crime financeiro, a delicadeza da informação é tamanha que às vezes as fontes preferem conversar com telefones pré-pagos, cujo número é jogado fora depois da conversa. Seria ingênuo pedir um encontro face a face com uma fonte dessas. A ideia de jornalismo controle remoto pode ser verdadeira para o jornalismo de celebridades, um subgênero do qual entendo quase nada.

Cunha Volto a citar Gay Talese: “Um bom trabalho não é rápido nem fácil. Ele demora um longo tempo, mas também dura um longo tempo. Muito do jornalismo de hoje é feito a partir de um laptop. Eles procuram informações a partir da internet, não falam com muitas pessoas. Os jornalistas, hoje, não estão descobrindo nada por tentativa ou por acidente. O que estão fazendo é muito imediatista. O jornalismo tem se tornado muito previsível. Nada é profundo, pensado ou divagado. Então o jornalismo está se tornando preguiçoso, porque os jornalistas não querem se mexer. E estão perdendo todo o contexto da vida”.

A perda de espaço da reportagem não seria um círculo vicioso? Veículos de comunicação estão com menos recursos para bancar uma boa investigação porque têm menos público e isso aconteceria porque há menos reportagens boas para o público ler ou assistir?

Moraes Neto Ou os jornais apostam radicalmente no diferencial, em pautas próprias, em assuntos exclusivos, em reportagens autorais, ou podem sumir do mapa num futuro não tão remoto. Pelo menos na forma como existem hoje, quando as informações são divulgadas em tempo real, na internet. Ou seja, é como se a própria apuração já fosse transmitida ao consumidor, aos poucos. O jornal precisa desesperadamente ser diferente no dia seguinte. Se não for, cedo ou tarde vai virar algo dispensável. É esse o grande desafio de quem faz jornalismo impresso. A boa notícia: nunca se precisou tanto de talentos!

Carvalho Tenho dúvidas se essa hipótese é verdadeira. Apesar de toda a crise que a imprensa atravessa, os jornais continuam investigando. A melhor reportagem do ano, na minha opinião, foi uma longa investigação do New York Times sobre a Apple. Após a reportagem, a Apple forçou a Foxconn a reduzir a jornada de trabalho e aumentar salários dos trabalhadores chineses. No Brasil, no ano passado, foi uma reportagem investigativa que revelou que o então chefe da Casa Civil do governo Dilma, Antonio Palocci, mantinha uma empresa de consultoria enquanto estava no governo. Palocci acabou demitido com a revelação.

Cunha Não acredito nesse jornalismo em que o chefe da contabilidade é tão importante quanto o editor-chefe. Nesse modelo não interessa a qualidade da pauta, e sim se ela vai ser rapidamente rentável. E esse modelo parece não estar dando certo mesmo para as finanças das empresas. A tiragem dos jornais, por exemplo, está caindo. Em 1998, a Folha de S.Paulo apregoava ter tiragem de 1 milhão de exemplares. Hoje, segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ), todos os maiores jornais do País têm tiragem média de 290 mil exemplares, e a Folha perdeu o primeiro lugar no ranking nacional para o Super Notícia, um jornal popular de Belo Horizonte, vendido a 25 centavos para as classes C e D, e que atrai leitores com prêmios como panelas, faqueiros e outras bugigangas. O Rio de Janeiro é o melhor exemplo dessa preocupante retração. Nos anos 1950, quando ainda era a capital federal, a cidade de 3 milhões de habitantes tinha 18 jornais diários, com tiragem diária de 1,2 milhão de exemplares. Hoje, com o dobro da população, o Rio tem apenas um grande jornal e 500 mil exemplares/dia. Ou seja, os jornalistas que entram na profissão hoje, entusiasmados pelo Caso Watergate ou até pelo impeachment de Collor, terão uma dura luta pela frente, se quiserem fazer jornalismo a fundo, apostando na reportagem.

*Publicado originalmente na edição impressa #8.