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Postado em 08/10/2012 - 12:12
Quem fica parado se trumbica
Nina Gazire

Como a mobilidade motivou artistas a criarem dispositivos de comunicação e interação dignos de histórias em quadrinhos

Videoman

Na década de 1960, o personagem Maxwell Smart empunhava as mais estranhas engenhocas criadas pela C.O.N.T.R.O.L.E, uma agência secreta da qual Smart era um dos mais importantes – e atrapalhados – espiões. Entre essas invenções improváveis estava o famoso sapatofone. Uma das passagens mais memoráveis do seriado Agente 86 era, quando precisava se comunicar com urgência, o espião sacando um sapato dos pés, e protagonizando uma cena surreal em que falava com um sapato que tinha dígitos na sola.

Mais do que tentar ser uma paródia de James Bond, o seriado preconizava o início de uma era de vigilância ubíqua patrocinada pelo clima da Guerra Fria, em que todo e qualquer objeto poderia ser transformado em uma máquina de comunicação a distância, qualquer lente poderia ser usada para registrar momentos indiscretos e a noção de privacidade se tornaria uma coisa tão distante quanto hoje nos parece a ideia de um sapato-telefone. Ou não?

Em 1993, a artista finlandesa Laura Beloff começou a achar mais do que estranho o fato de que todos os seus amigos possuíam um telefone celular, exceto ela própria. Ela então passou a ter uma postura antropológica em relação aos seus companheiros, observando-os desenvolver uma dependência cada vez maior dos dispositivos. A mesma curiosidade tomou conta da artista quando, a partir de 1994, a internet começou a se tornar tão proeminente quanto os celulares de tamanho ainda avantajado.

Do sapatofone ao Videoman

Não que Beloff tenha sido influenciada pelo sapatofone do Agente 86, mas o seu primeiro trabalho, chamado Seven Mile Boots, é uma espécie de herdeiro dessa invenção mequetrefe. A artista persistiu em atravessar a década de 1990 sem um celular porque o considerava tão estranho quanto o telefone-calçado do agente Smart, e em 2003 decidiu criar um par de botas sonoras com acesso à internet. “A questão inicial que motivou a obra Seven Mile Boot foi pensar nas tecnologias de comunicação como algo vestível, fenômeno que eu já vinha observando”, explica em e-mail a seLecT. Se o Agente 86 fazia uma sátira da Guerra Fria usando um estilo estapafúrdio, pela tangente o seriado acabou prevendo o futuro de uma das principais vertentes da tecnologia atual, que é das tecnologias vestíveis, arte da qual Beloff é uma das pioneiras.

Após Seven Mile Boots, ela criou obras que deixam os inventos usados pelo agente Smart literalmente no sapato. Exemplo é a obra HEAD (Mobile Wearable Sculpture), de 2005, uma escultura vestível com conexão à internet e recebe inputs do público via telefone celular/sms. A escultura vestível contém um telefone móvel com câmera acoplada ao olho da cabeça-escultura, que faz uma foto toda vez que recebe uma mensagem do público. O resultado são fotos com ângulos inusitados, já que o pressuposto é o de que a escultura estará sempre se movendo. “Eu estava muito interessada na equação homem-corpo-tecnologia. E, como isso se tornou parte da minha própria realidade por causa do uso do telefone celular, pareceu bastante óbvio eu começar a trabalhar com ele”, continua Beloff.

Mais do que simplesmente fazer uma brincadeira e experimentação com os dispositivos de comunicação em relação ao corpo, a principal preocupação de artistas como Beloff é problematizar por meio da arte a questão do acesso à comunicação móvel em um mundo em que o setor é dominado por empresas privadas, criando sistemas inusitados cujo principal eixo é o da portabilidade. A ideia de ter consigo um dispositivo que permita a comunicação e a transmissão a distância de qualquer lugar e situação foi uma utopia no mínimo desde que surgiu a ideia da bola de cristal.

Esse ímpeto digno de um mundo de histórias em quadrinhos foi o principal motor do artista mexicano Fernando Llanos para criar a intervenção Videoman. Assim como Beloff, lá pelo ano 2000, Llanos estava interessado no potencial da internet como uma plataforma para acesso universal à comunicação. O foco de Llanos não foi inicialmente o das tecnologias como vestimentas, mas o vídeo e sua transmissão, circulação e acesso a distância. Muito antes de o YouTube existir, o artista criou um projeto chamado VIDEOMAILS, uma plataforma gratuita que permitia a qualquer um enviar e trocar vídeos por e-mail durante o período de um ano.

Llanos, que sempre foi um ótimo desenhista e fã de super-heróis, resolveu criar um personagem ao estilo Batman. Ele desenhou e confeccionou uma vestimenta que permite que ele faça projeções em vídeo a partir do próprio corpo, levando seu show para qualquer lugar. Novamente, mais do que a comunicação, o importante era a portabilidade como forma de acesso e alcance para todos.

Em 2005, o artista começou a fazer videoprojeções ambulantes, levando a performance para diferentes lugares do mundo, como os EUA, o México e, inclusive, o Brasil, atraindo curiosos que se amontoavam ao seu redor para assistir aos vídeos. “Pensei que seria boa ideia usar minha infraestrutura. Eu tenho 1,92 metro de altura e por isso posso carregar muito peso. Também tive como ponto de partida a minha natureza suburbana, já que sou da periferia da Cidade do México e estou acostumado a carregar muitas coisas: uma mochila com livros, alimentação, casaco etc. Quando se vive em uma cidade-dormitório, não dá tempo para retornar até a noite. Com base nesses dois fatores, mais o desejo de ir para as ruas, foi que nasceu o Videoman”, explica Llanos.

TV móvel para manifestos

Manifesto21

A dupla MM Não É Confete, mais conhecida como mmnehcft, formada pelas paulistas Mariana Kadlec e Milena Szafir, começou a criar intervenções e manifestos em torno do conceito do panóptico em 2003. O termo panóptico foi criado para designar um centro penitenciário desenhado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, em 1785, em que os vigilantes tinham uma visão total de todos os detentos. Posteriormente, o filósofo francês Michel Foucault apropriou-se da ideia para transformá-la em um conceito que se refere a todos os dispositivos disciplinares e de vigilância da sociedade.

Nesse contexto, Foucault e o Agente 86 se aproximam. O denominador comum é o fato de que até os sapatos podem se tornar dispositivos que nos vigiam em uma sociedade hiperconectada e que existem câmeras de circuito interno observando até o lugar onde Judas bateu as botas. Trazendo essa questão para o contexto brasileiro, os manifestos do mmnehcft acabaram resultando, em 2006, na ação Manifesto21.TV.

Com a proposta de unir ativismo, interação, arte e comunicação, o coletivo decidiu explorar a questão das mídias on e off-line, criando uma espécie de estação móvel de tevê que transmitia via internet, possibilitando a qualquer pessoa fazer o próprio manifesto em tempo real.
“Nossa ideia era fazer um uso da tecnologia semelhante ao que Duchamp fez com os ready-mades. Usá-la para criar uma coisa nova e problematizar a questão da vigilância. Hoje em dia, vejo que as pessoas estão mais preocupadas em mexer com a tecnologia do que discuti-la”, relembra Milena Szafir. Para a ação, a artista vestia-se como uma espécie de ninja – toda de preto – e saía pelas ruas à caça de quem quisesse botar a boca no trombone.

A dupla tomou as ruas de São Paulo, em uma série de performances com um carrinho que parecia o de vendedores ambulantes, misturando high e low-tech, algo típico da criatividade latino-americana, como lembrou Fernando Llanos ao se intitular um artista suburbano. E em uma sociedade em que o ethos corrente se resume ao “emito, logo existo”, obviamente o carrinho Manifesto21.TV atraía curiosos interessados em ver e serem vistos. A novidade estava no fato de que, em vez da televisão, a tela do momento era a do computador.

Do manifesto à gambiarra

Gambiociclo

Similar à proposta do Manifesto21.TV é o trabalho Gambiociclo, do coletivo mineiro Gambiólogos. Mais recente que o trabalho Manifesto21.TV, o Gambiociclo é uma unidade móvel de transmissão multimídia, mas não à primeira vista. Assim como o carrinho do MM Não É Confete, o Gambiociclo consiste numa bicicleta-carro que lembra a estética-camelô dos vendedores ambulantes. Trata-se de um triciclo utilizado para cargas que foi modificado para carregar equipamentos eletrônicos – um gerador elétrico, computadores, câmeras, projetores, alto-falantes –, cujo objetivo principal é a projeção de grafites digitais no espaço urbano.

A obra já circulou em diferentes festivais dedicados à arte digital. “Nós do coletivo, de formas distintas, temos uma ligação muito forte com a cultura brasileira de rua. Sempre tivemos uma curiosidade grande com esses veículos ‘gambiarrentos’ que vemos nas cidades brasileiras”, explica Fred Paulino, membro do Gambiólogos e um dos idealizadores do projeto. Assim como Videoman, de Llanos, o Manifesto21.TV e até mesmo as botas on-line de Laura Beloff, o Gambiociclo propõe uma reflexão sobre como as sociedades criam soluções para o acesso à comunicação e à tecnologia por meio da precariedade e da mobilidade.

Compartilhando a gambiarra no seu gene, o sapatofone hoje faz muito mais sentido do que qualquer caneta-espiã-que-grava-vídeo usada por James Bond em suas missões. “No início, eu pensava que o mais importante do Gambiociclo seria a sua funcionalidade, ou seja, o tipo de intervenção ou tecnologia que ele poderia propiciar. À medida que começamos a circular, me dei conta de como o próprio objeto interessava tanto e estimulava o público a interagir”, reflete Paulino. O trabalho mais recente do grupo, o MALAS CHAT – duas malas velhas que formam um sistema de comunicação tipo Skype –, é uma sátira à tecnologia de videoconferência em dispositivos móveis.

*Publicado originalmente na edição impressa #7.