icon-plus
Paul B. Preciado (Foto: Marie Rouge)
Postado em 27/10/2020 - 5:51
Radicalmente vivo
Ao descrever sua trajetória, Paul B. Preciado mostra o esforço preciso para sustentar o processo de descolonização de seu corpo

Eu sou um monstro, declara Paul B. Preciado diante de 3,5 mil psicanalistas em Paris, num colóquio intitulado Mulheres em Psicanálise. Sim, um monstro que fala, diz ele. Afinal, escapou da gaiola feminina onde a vida toda se sentira aprisionado pela expectativa que recai sobre toda e qualquer mulher. Quantos deveres lhe são atribuídos, desde os conjugais, familiares, reprodutivos, até os estéticos, corporais, sexuais? Sem falar do silenciamento pessoal, do sujeitamento social, da opressão, exploração e violência física que tal condição impõe.

Capa do livro Je Suis Un Monstre Qui Vous Parle, de Paul B. Preciado (Foto: Divulgação)

O relato de como “Beatriz” sobreviveu desde pequena a tal domesticação é comovente. O que lhe permitiu atravessar o inferno, relata, foi a leitura incessante de autoras feministas negras, lésbicas, punks, através das quais teve acesso às vozes heréticas que verbalizavam tudo aquilo que “ela” vivia como intolerável.

Ao mudar de gênero e penetrar na gaiola masculina, Preciado sentiu-se liberado dos olhares, expectativas, humilhações, assédios vários, tendo acesso a uma condição de “universalidade neutra” – isto é, o padrão de normalidade a partir do qual se “mede” a subalternidade feminina. Donde a prova cabal, se é que esta faltava, da absoluta assimetria de gênero e dos mecanismos que o fabricam, por dentro e por fora.

É óbvio que a transição a que Preciado se dispôs, com a aplicação controlada de gel de testosterona, a travessia do labirinto jurídico, médico, psicológico, psiquiátrico, não teve por objetivo conquistar o conforto subjetivo vivido pelos homens, repleto de violência e arrogância, igualmente insuportáveis. Constituiu uma estratégia calculada e refletida para embaralhar as cartas e, através do próprio corpo, desafiar a codificação política dominante. Só assim foi possível reivindicar o que também Judith Butler exigiu, o reconhecimento legal do estatuto de pessoa não binária. Pois é assim que Preciado se define: homem trans, corpo não binário.

Anos atrás, já com trajetória bombástica no campo dos estudos e do ativismo queer, vários livros publicados que causaram furor pelo mundo todo e respeitabilidade acadêmica (no Brasil, até o momento, foram dois: Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica e Manifesto Contrassexual, ambos pela n-1edições. Em breve, também Pornotopia), aos 38 anos de idade Beatriz Preciado decidiu adotar oficialmente o nome de Paul B. Preciado. Juridicamente, a partir daí, desertou do gênero feminino. Muita gente se perguntou se esse gesto não representava uma traição à causa feminista, justamente por parte de alguém que sempre colocou em xeque, da maneira mais cáustica, a binariedade de gênero. Mas foi todo o contrário.

Kafka
No Relatório para uma Academia, de Kafka, um macaco conta para cientistas como sua “hominização” fora a única saída encontrada para escapar ao jugo opressivo de seu captor. Era preciso entrar na jaula da “subjetividade humana” e adotar os códigos vigentes, inclusive aqueles responsáveis pela sua captura, para poder “safar-se”. O paradoxo em Pedro o Vermelho é claro: precisou adotar a lógica do dominador para deixar de ser dominado. Estranha liberdade… Ou melhor – não é liberdade, mas apenas uma saída.

Foi essa a estrutura da belíssima performance kafkiana de Preciado diante da Escola da causa freudiana francesa. Não por outra razão causou o escândalo que causou. Ao descrever sua trajetória de homem trans, o autor mostra quanto esforço foi preciso para deixar de ser “objeto” de olhar ou de discurso, tal como foram sempre as mulheres, e os animais em zoológico, para se tornar “sujeito de fala”. O que isso revela é simplesmente aquilo que por milênios foi silenciado: que apenas o corpo e a subjetividade masculinos eram considerados perfeitos.

A história da filosofia, da medicina, da pedagogia, da psiquiatria, da psicologia, da arte e, obviamente, da psicanálise assenta-se sobre uma epistemologia de gênero, que é, afinal, parte indissociável de um dispositivo político maior responsável pela subalternização da mulher e da “normalização” da feminilidade. Nessa epistemologia, a tentativa de qualquer indivíduo de escapar à binariedade pressuposta é tachada de aberrante, animal para alguns, psicótica para outros, monstruosa para terceiros. Mas esse ser “trânsfuga” do regime binário heteropatriarcal é alguém que teve a coragem de sustentar um processo de despatriarcalização e descolonização do corpo – que uma nova clínica deveria conseguir acompanhar. O corpo trans revela uma “potência de vida”, mas para ele nada está dado. A liberdade sexual é “um túnel que se escava com as próprias mãos”. Só através de uma tal escavação é possível livrar-se daquela rede “semiotécnica e cognitiva” que limita a percepção, bem como as maneiras de sentir e de amar.

Ao término deste livro muito bem escrito, instigante, provocativo, que lança uma luz ao que é tão óbvio e está debaixo do nosso nariz o tempo todo, mais do que nunca nos perguntamos se a identidade sexual, tão relevante na suposta constituição da subjetividade, segundo a psicanálise, com todo o cortejo de noções que a acompanham, tais como organização da libido, complexo de Édipo, atividade/passividade, inveja do pênis, estado pré-genital e genital, em suma, um inconsciente da diferença sexual, sem falar da patologização da homossexualidade, não faz parte de um mito contemporâneo, indissociável do dispositivo epistemológico e político heteropatriarcal.

Mas não se trata de um ataque à psicanálise enquanto tal. O autor nunca escondeu que esteve no divã de freudianos, kleinianos, lacanianos, guattarianos, e que tem consciência que tudo o que de relevante pôde ter vivido ali deu-se apenas quando as/os analistas desviavam do enquadre teórico binário ao qual manifestavam, ao menos formalmente, a fidelidade de escola. Certamente, alguns psicanalistas responderiam, com razão, que a psicanálise é justamente esse desvio. Para além das polêmicas com a psicanálise, porém, uma afirmação de cunho filosófico e existencial permite vislumbrar o alcance maior dessa perspectiva. Trata-se da concepção, por assim dizer, antigenealógica do autor. O desafio, para um trans, seria ativar genes que foram anulados pela presença prevalente de certos hormônios, liberando assim a expressão de um fenótipo que, normalmente, ficaria mudo. “Para ser trans, é preciso aceitar a irrupção triunfal de um outro futuro em si, em todas as células de seu corpo. Fazer uma transição equivale a compreender que os códigos culturais da masculinidade e feminidade são anedóticos se comparados à infinita variação das modalidades de existência.” Através do turbilhão de transformações no qual mergulha um trans não se trata apenas de uma mudança de gênero, mas de uma relação outra com os elementos que compõem o mundo – devir-vegetal, devir-inumano e tantos outros!

Ao formular uma pergunta que deve atravessar qualquer pessoa que tenha cruzado, ouvido ou lido Preciado – a saber, terá sido “operado”? – ele mesmo responde que com muito cuidado e ao longo de muitos anos, de inúmeras sessões, “operou” o aparelho epistêmico que diagnosticou seu corpo e suas práticas como patológicos. Aí, pergunta: “E vocês, carxs psicanalistas, vocês se operaram?” Eis um livro, uma existência, uma trajetória, que precisou inventar uma nova língua para ter acesso ao que hoje parece o mais difícil: estar radicalmente vivo.

Je Suis Un Monstre Qui Vous Parle
De Paul B. Preciado pela editora Grasset