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All Fragments of the Word Will Come Back Here to Mend Each Other (2022), do coletivo The School of Mutants; vista da instalação na 12th Berlin Biennale, Akademie der Künste, Pariser Platz [Foto: dotgain.info]
Postado em 17/06/2022 - 10:17
Reapropriar o presente: a arte é uma máquina do tempo
Texto curatorial do artista Kader Attia para a 12a Bienal de Berlim é uma aula de descolonização; leia em português na seLecT

Ainda Presente!
Por mais diversos e variados que sejam os mundos que compõem nossa realidade humana atual, eles subsistem em meio ao desperdício e à cacofonia que atravessam a corrida frenética e destrutiva do capitalismo global em direção à produção. Uma profusão aparentemente interminável de exposições monumentais e extensas reflete os excessos materiais dessa superprodução global. Então, por que adicionar mais uma exposição a tudo isso? Esta é a pergunta que venho me fazendo há anos e que deve ser feita mais uma vez com a ajuda dos artistas, arquivos, filmes, teóricos e ativistas convidados para os espaços de fala e reflexão coletiva oferecidos pela 12ª Bienal de Berlim.

Desde o início da modernidade, nosso planeta sofreu sucessivas e ruinosas mudanças que se aceleraram de forma alarmante desde o início do terceiro milênio e são a consequência diacrônica de uma série de descuidos devidos à nossa cegueira. Essa miopia é produto do mito da modernidade ocidental, cujo motor, chamado progresso, é alimentado pela certeza e violência de uma crença enganosa em sua própria superioridade. Essa ilusão é exercida sobre sociedades que não adotaram uma visão de mundo científica, sobre o ambiente natural que é destruído, sobre as diversas culturas hegemonizadas, sobre nossa própria saúde – um modelo econômico superexplorado, como a pandemia revelou – e, finalmente, sobre o próprio tempo, que junto com a ciência encarna o desafio prometeico da modernidade. Essa ilusão de superioridade tem um efeito bumerangue, seu narcisismo inato leva inevitavelmente à autodestruição.

Mundos de Feridas
O lugar a que chegamos hoje não é por acaso: é o resultado de formações históricas construídas ao longo dos séculos. Em seu egoísmo, as sociedades ocidentais modernas tomaram como certo seu próprio caráter liberal, assumindo falsamente que o equilíbrio entre livre comércio e sufrágio universal garante um sistema auto-regulado de valores democráticos universais. A sociedade distópica que herdamos dessa promessa utópica produz caos, mas nega a responsabilidade por isso. Na verdade, o mundo atual é como é porque carrega todas as feridas acumuladas ao longo da história da modernidade ocidental. Sem reparações, elas continuam a assombrar nossas sociedades.

Esse mundo de feridas é baseado nos crimes extraordinários cometidos pela modernidade – da escravidão ao colonialismo, sendo o racismo uma alavanca ideológica para estabelecer a certeza de sua supremacia sobre os povos subjugados, o Ocidente fundou o capitalismo moderno na brutalização dos outros. Mas enquanto crimes racistas e genocídios foram normalizados para justificar a extração de riqueza do Sul Global, o Ocidente agiu de maneira igualmente genocida ao construir ódio contra segmentos de suas próprias populações, como aquele infligido aos judeus europeus ao longo da história, resultando no singular crime do Holocausto. A máquina capitalista moderna profere o ódio ao outro – estrangeiros, BIPOC, pessoas LGBTQIA+, ciganos e outras comunidades nômades, pessoas em situação de rua ou com doença mental, pessoas com deficiência – como dogma, designando a diferença como um estado de inferioridade inerente à alteridade. Obcecada por seu próprio mito de perfeição homogênea, a modernidade contém em si as próprias sementes do fascismo. Qual é a razão por trás do fracasso em reparar o trauma coletivo que assombra nossas sociedades como o membro fantasma de um corpo amputado? Fazer essa pergunta, eu argumentaria, inicia um processo de reparação – tanto material quanto imaterial. Entender por que essas feridas nunca foram reparadas pode nos fazer compreender como sua reparação é crucial para uma sociedade mais justa.

As feridas que nunca foram reparadas tornaram-se invisíveis, embora não tenham desaparecido: seus sintomas se manifestam visivelmente. Mas o poder opacificante da narrativa colonial procura apagar essas feridas como um evento que nunca aconteceu: uma destituição, um não-lugar. Esse lugar de apagamento estabelecido pela colonialidade constitui seu discurso, produto do pensamento moderno, “o filho desgarrado do Iluminismo”(1) para citar a psicanalista argelina Karima Lazali. Ela cita um comentário muito revelador feito por um colono francês em O Primeiro Homem (1960), de Albert Camus, ao partir da Argélia depois da guerra: “Já que o que fizemos aqui é um crime, tem que ser apagado.”(2) A invisibilidade é a arma de controle preferida do discurso: sempre na negação do crime, o enunciador reivindica a vitória ao mesmo tempo em que nega toda responsabilidade.

Os regimes de abstração do imperialismo chegam ao fascismo via colonialismo, articulando um discurso hegemônico de heroísmo ocidental superior a todos os outros, subordinados e reduzidos a várias categorias – raça, etnia, religião, gênero, língua etc. – para serem objetificados e controlados por meio da narrativa e da história. Segundo o estudioso decolonial Rolando Vázquez, a força abstrata do locus da colonialidade emite a enunciação de um discurso colonial moderno que constrói a inferioridade visível do outro sem nunca nomear a si, hegemonizando o espaço discursivo que ocupa por meio do que eu chamaria de expansão radical – que é outra forma de universalismo. Categorias de alteridade são estabelecidas junto à recusa em reconhecer a categoria normativa de branquitude a partir da qual esse binarismo é formulado. O paradoxo da expansão radical é que a hipervisibilidade dos outros tende a reduzi-los a um conceito único e universal de humanidade, enunciado por e a partir do locus invisível e privilegiado do Ocidente BRANCO colonial moderno. Como escreveu Vázquez, “não há pretensão de universalidade sem apagamento.”(3)

Entre os muitos méritos da revolução decolonial que estamos testemunhando hoje no Ocidente é que ela torna o medo branco de perder privilégios excruciantemente visível. Os ideólogos da extrema direita que cedem a essa paranóia com ameaças imaginárias como “a grande substituição” ou “racismo antibranco” temem o efeito bumerangue do apagamento hegemônico colonial racista elaborado pela branquitude ocidental e pela colonização. Pode-se perguntar se o aumento da islamofobia e do ódio anti-imigrantes que fomentou o populismo de direita nos EUA manifesta a fobia do Ocidente de ter infligido a si mesmo o que infligiu aos outros. A historiadora Roxanne Dunbar-Ortiz observou o medo dos imigrantes pelos supremacistas brancos americanos, que são eles próprios descendentes de imigrantes e vivem em território roubado de seus habitantes originais.(4)

Arquivo como Conhecimento e Experiência
A lista dos crimes do colonialismo é tão longa que muitos deles permanecem invisíveis. Embora repará-los pareça ser uma tarefa sem fim, devemos ir além desse desencorajamento sistemático. O patrimônio cultural material que foi vítima da escravidão e do colonialismo – suas obras de arte e objetos do cotidiano presentes nos museus ocidentais em quantidades quase imensuráveis – precisa de reparação urgente do trauma colonial e seu regime de invisibilização. O músico, escritor e economista senegalês Felwine Sarr sugeriu que o debate sobre a restituição da cultura material e imaterial não ocidental não pode estagnar, mas deve evoluir para a reinvenção de um novo espaço-tempo, onde o acesso ao arquivo como conhecimento e experiência aproxime a função de seus objetos aos seus contextos originais. Cuidar desse arquivo significa refletir sobre a própria restituição desse patrimônio cultural material.(5) Como Sarr afirmou em meu filme The Object’s Interlacing (2020), o próprio lugar de retorno desses objetos deve ser repensado para refutar o regime de abstração colonial que gera as estruturas neutralizantes da modernidade museográfica – a vitrine sendo sua ferramenta por excelência. É decepcionante ver as longamente aguardadas estátuas dos reis Glegle, Behanzin e Guezo do reino de Dahomey partirem das vitrines do Musée du Quai Branly (França) apenas para aterrissar em outras vitrines no Palais de la Marina, Cotonou (Benim). O processo de restituição oferece uma oportunidade importante no tempo presente para a reinvenção, porque, como a reparação, é imprevisível.

Mesmo que as feridas materiais e intangíveis do colonialismo pareçam irreparáveis, não podemos continuar a negá-las ou ignorá-las com o silêncio. Nosso silêncio é a arma empregada pelo regime de invisibilização do imperialismo. Devemos identificar essas feridas, ouvi-las, falar sobre elas e cuidar delas – reinventando-nos no processo. Há muitas maneiras de abordar esta difícil tarefa, mas acredito que somente a arte, na qual incluo todos os campos criativos, pode se opor com sucesso às sementes imperialistas do fascismo e seus aparatos de Estado, precisamente porque a arte é imprevisível. Por ser incontrolável, a arte se sustenta contra o obscurantismo político e religioso, independente da localização geográfica ou temporal.

Reapropriando o Presente
Em seu livro Automatic Society, de 2016, o filósofo e teórico da mídia Bernard Stiegler explica como a proletarização que Karl Marx erroneamente associou a classe constitui o desaparecimento do conhecimento – primeiro know-how, depois savoir-vivre, como observado por Walter Benjamin e Paul Valéry – através do desaparecimento, gerado pela indústria cultural nascente, começando com o rádio na década de 1920, do espaço social.(6) A indústria cinematográfica de Hollywood que se seguiu foi muito mais perniciosa por promulgar o capitalismo ocidental moderno como a vitória heróica na luta contra o fascismo, obscurecendo o que o poeta martinicano e fundador do movimento Négritude Aimé Césaire argumentou em seu discurso anticolonialista de 1956 “Cultura e Colonização” – que o fascismo é o retorno do colonialismo.(7)

Devemos nos atentar, então, às consequências da lógica capitalista da modernidade/colonialidade e sua capacidade de despolitizar o sujeito social. Hoje, a sociedade humana se automatizou a tal ponto que a individuação coletiva articulada por Stiegler e o filósofo Gilbert Simondon é reduzida a uma individualização pulsional e narcísica dependente de sua própria alienação tecnológica. É possível emancipar-se das governanças fascistas latentes que derivam de regimes de invisibilidade e de seu avatar tecnológico dentro da governança algorítmica? Talvez — e por mais paradoxal que pareça — possamos fazê-lo não olhando para o passado ou para o futuro, mas nos reapropriando do presente.

Os mundos sociais que habitamos hoje são articulados por meio de ambientes em rede interligados que interagem de maneiras que não são imediatamente visíveis. Quanto mais um usuário de rede social prestar atenção ao discurso de ódio expresso por uma pequena minoria, mais o algoritmo o conectará com outros que têm essas opiniões. Ainda mais problemático é que a maioria das pessoas que passaram a transitar nesses espaços radicais nem sequer era abertamente política para começar. Um amigo me disse uma vez que depois de assistir a um vídeo no YouTube sobre os ataques de 11 de setembro, foi apresentado a dezenas de vídeos de fundamentalistas islâmicos, o que o levou a concluir que o maior divulgador do islamismo radical não era outro senão o próprio YouTube. A ignorância é uma parte importante do que se desenrola no regime de invisibilidade e abstração orquestrado pela colonialidade, modernidade, imperialismo e fascismo: é seu denominador comum. Daí a importância de considerar o poder da governança que administra esse regime de invisibilidade – de torná-lo legível para entender por que é tão perigoso.

Mais do que nunca, a governança algorítmica tomou conta do nosso momento presente; tornou-se um campo de luta econômica sem precedentes voltada à extração de dados comportamentais, que é um modelo econômico tão poderoso que nos sentimos impotentes para libertar nosso presente de suas garras. Um exemplo muito cotidiano e paradoxal disso é nosso descuido com o passado ou o futuro quando postamos imagens ou textos nas redes sociais; a governança computacional nos faz acreditar que controlamos nosso presente enquanto ela extrai nossos dados comportamentais para prever nossos comportamentos futuros. Quer compartilhemos informações freneticamente ou de forma mais metódica, tendemos a esquecê-las quase imediatamente, enquanto a governança algorítmica nunca esquece. Ao contrário, no que Stiegler denominou “retenção terciária digital”,(8) a governança algorítmica nos duplica ao exteriorizar nossa memória. Ele argumenta que essa espoliação da memória é a fonte da última, mas não menos catastrófica, proletarização do conhecimento como o desaparecimento de nossa produção coletiva de significados – somos cada vez menos obrigados a pensar. Projetamos-nos diariamente no futuro ou no passado, acreditando que agimos sempre no presente; mas este presente é na verdade um presente proxy decretado pela governança algorítmica do capitalismo 24/7 (9) que é inerente ao imperialismo. Para resistir a isso, é fundamental reapropriar-se do nosso presente. Em que tipo de presente a governança algorítmica baseia seu modelo econômico? Que presente é esse que o discurso político explora para controlar e exercer poder sobre nós? É o presente consciente do que chamo de “campo da emoção”.

O Campo da Emoção
Aristóteles descreveu a experiência catártica do teatro como a reparação das feridas de seu público. Ao longo da história, da Grécia à contemporaneidade, o campo da emoção foi apropriado por oradores carismáticos no espaço real ou virtual, público ou privado e, mais recentemente, pelo capitalismo desenfreado que ameaça a democracia. Na visibilidade que governa a imensa economia do big data, a atenção, que é tanto dependente de quanto inerente à consciência e ao presente, tornou-se o foco principal do capitalismo. A atenção é o presente da consciência, cobiçado por algoritmos que coletam traços comportamentais para prever nossos comportamentos futuros. Os algoritmos de mineração de dados devem ocupar nosso presente como sujeitos conectados para prever – e colonizar – nossos comportamentos futuros. É por isso que nos projetamos constantemente no futuro ou no passado, mas nunca no presente; paradoxalmente, ao ser forçado a interagir por impulso com um presente colonizado 24 horas por dia, 7 dias por semana, pela governança computacional e o capitalismo, o presente não nos pertence mais. A governança algorítmica associada ao capitalismo 24/7 é tão traiçoeira em sua ambivalência quanto o regime de invisibilidade da colonialidade e do universalismo. Enquanto nos aprisiona em um presente inconsciente e impulsivo que explora nossos comportamentos, a governança algorítmica nos faz privilegiar nossa projeção no futuro e no passado, condenando-nos, como Sísifo, a retornar incessantemente ao presente, que tomamos como certo ser nosso.

Como recuperamos nosso presente? Recuperando nossa atenção. “Qualquer pintor, qualquer artista, músico, monta uma armadilha para sua atenção. Essa é a natureza da arte”(10), afirmou o teórico da mídia Marshall McLuhan. Eu acrescentaria que os artistas também procuram capturar o presente. O cientista da comunicação Daniel Bougnoux argumentou que a arte por definição gera atenção, portanto, a obra de arte é uma máquina que retarda o tempo: “Se a humanidade só inventou máquinas para acelerar, quais seriam as máquinas para desacelerar? Obras de arte, talvez, para acessar outra temporalidade e não morrer do presente.”(11) Diante de uma obra de arte, o espectador é mergulhado em outra temporalidade, radicalmente diferente daquela de seu ambiente, inacessível ao apetite insaciável de governança algorítmica. A arte oferece um presente prolongado e, sobretudo, livre. O presente separa tanto quanto conecta passado e futuro, e a obra de arte permite que a consciência perceba sua furtividade, onde a emoção está presente.

A capacidade de brincar com o tempo – com a percepção do tempo, mais precisamente – é parte integrante da outra atividade humana fundamental que alimenta todo o pensamento humano: sonhar. De acordo com Stiegler, todo pensamento conceitual humano deriva dos sonhos. Passar do sonho individual à sua realização coletiva é abrir a possibilidade de uma individuação – de um significado que pode ser compartilhado entre indivíduos e grupos de indivíduos. Na sociedade automatizada em que vivemos, a governança algorítmica contorna a produção de sentido para extrair dados para fins econômicos (e políticos). A arte se opõe à governança algorítmica cuidando de nossos sonhos e cultivando nosso poder de desautomatizá-los. Por seu caráter imprevisível – o que ela é e o que produz – a arte é uma máquina improvável que não pode ser submetida ao cálculo de probabilidades. Dados podem ser analisados ​​para gerar estatísticas sobre a economia da arte ou as redes a ela relacionadas, mas nunca podem prever como será a arte do amanhã.

“O poeta e o artista, exteriorizando seus sonhos e devaneios, nos fazem sonhar e alucinar um mundo em estado de choque”, escreve Stiegler.(12) A noção de choque a que Stiegler se refere remonta todo o caminho de volta na história, quando os humanos descobriram pela primeira vez o poder da reprodução visual nas paredes de cavernas escuras, através das formas móveis das sombras do fogo projetadas nelas – uma linguagem protovisual. Os sonhos de artistas e poetas constituem sempre novos circuitos de transindividuação. A experiência dos surrealistas ou o conceito do sonhar mantido pelos povos indígenas da Austrália são ilustrações perfeitas da capacidade humana de desautomatizar os sonhos. Os seres humanos têm feito isso desde o início dos tempos. Isso é o que fazemos toda vez que sonhamos — enquanto dormimos ou em um devaneio acordado. Stiegler cita Félix Guattari, que teorizou essa experiência descrevendo como, quando dirige em uma estrada familiar, fica confiante o suficiente para se permitir sonhar acordado; porém, em certos momentos cruciais em que sua mente deve se concentrar em um perigo iminente, ele aciona o freio, seu inconsciente fundindo-se com a máquina em um inconsciente maquínico, desautomatizando seu sonho quando necessário.(13)

Além das Sombras
Como observou o arqueólogo Marc Azéma, em relação aos desenhos rupestres do Paleolítico, “os humanos sempre ‘sonharam’, compartilham essa faculdade com muitos animais. Mas o cérebro deles é uma máquina de produzir imagens muito mais avançadas… capazes de ser projetadas fora de seu ‘cinema interno’.”(14) Se há um momento crucial que liga as pinturas rupestres ao cinema, é a invenção da câmera obscura seguida pela lanterna mágica. As cavernas, como os cinemas, são espaços de escuridão, penetrados apenas em determinadas horas do dia ou do ano por um raio de sol que se infiltra na vegetação externa, lançando sombras nas paredes – de galhos de árvores ou folhas em movimento – que provavelmente inspiraram aqueles quem primeiro as observaram. Na Alegoria da Caverna de Platão, um fascínio pelas sombras projetadas em uma caverna no lugar dos objetos reais que representam do lado de fora é uma forma de aprisionamento. Sair desse aprisionamento é caminhar em direção à luz, mas não sem experimentar o choque da cegueira temporária. A alegoria de Platão revela uma certa ambivalência em relação à luz, que pode ser usada como ferramenta para controlar a visibilidade e, portanto, a liberdade.

Para Santo Agostinho, profundamente influenciado pelo platonismo, a verdade é a luz que os seres humanos lançam sobre as coisas para conhecê-las, mas assim que as tiram da sombra, as colocam de volta por medo de confrontar sua verdade. Toda governança obscurece a verdade: os regimes de invisibilidade da colonialidade e da sociedade distópica que normalizam nos deixam apenas a arte e a filosofia – como reflexos vivos ao invés de satisfação cega –, que nos permitem evoluir nossa capacidade de produzir inteligência coletiva, crítica da automação do nosso poder de interpretação. No sonho existe uma força anticolonialista, como argumentou Frantz Fanon: “A primeira coisa que o nativo aprende é ficar em seu lugar e não ultrapassar seus limites. É por isso que os sonhos do nativo são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Sonho que pulo, que nado, que corro, que subo. Sonho que caio na gargalhada, que atravesso o rio com um passo, que sou perseguido por bandos de carros que nunca me alcançam.”(15) Da mesma forma, o sociólogo congolês/gabonês Joseph Tonda escreveu: “O primeiro presidente do Gabão, Léon M’ba, imagem viva do sonho colonial, imperialista ou neocolonial, transformado em realidade afrodistópica, é o produto da obra onírica desse inconsciente maquínico do imperialismo, do colonialismo e do neocolonialismo. Ele é a imagem viva de um sonho que não pertencia a ele, mas a essa inconsciência de dominação, de sujeição, de exploração e desumanização do colonizado e neocolonizado. Somos as imagens de um sonho que não nos pertence…”(16) Devemos conhecer e compreender esse status de imagens-sonhos da máquina inconsciente do imperialismo que somos, para poder desautomatizá-los e reapropriar nossa soberania com base em uma hermenêutica da nossa imaginação.

Agência da Arte
Desde que os primeiros humanos lidaram com eventos trágicos da vida, como a perda de um ente querido, elaborando rituais artísticos como enterros, inventamos continuamente novas formas de dar sentido ao nosso mundo. Existir não é apenas resistir, mas inventar; é precisamente o que está em jogo na caverna de Platão. Assim, a alegoria é hoje mais relevante do que nunca se considerarmos as palavras de políticos e sofistas que manipulam suas audiências ou a disseminação de fake news via mídias tradicionais e sociais, em que a repetição produz um vício nas protensões do capitalismo digital(17), contornando as protensões humanas que compõem nossos sonhos. Para desautomatizar nossos sonhos, devemos sair continuamente da caverna, caminhar em direção à luz e inventar o presente. A caverna de hoje é a sociedade imperialista distópica onde tudo constitui um revisionismo sem fim da política real em processo. Tomamos isso como certo porque vivemos com a ilusão da inerência subordinada da democracia ao capitalismo sem qualquer alternativa, desencorajando-nos a lutar contra sua agência autodestrutiva. Extasiados pela governança algorítmica do capitalismo de vigilância, como Shoshana Zuboff explica em The Age of Surveillance Capitalism(18), nossos impulsos no presente são controlados enquanto testemunhamos passivamente a autodestruição de um sistema obsoleto, a megamáquina em que todos os ambientes – naturais , culturais, psicológicos, políticos – estão esgotados pelo colapso do capitalismo(19). Todos, exceto a agência da arte. O processo de agência criativa inventiva é tão poderoso quanto a agência do capitalismo, mas enquanto o capitalismo destrói para transformar seu crime em um suposto rejuvenescimento – uma semi-causa de seu renascimento – a arte desconstrói para que possa reparar e evoluir, gerando novas formas de interpretar o presente.

Inerente à emoção, a consciência é movimento no presente: como seres emotivos, interpretativos, somos totalmente imprevisíveis no presente, e isso nos permite escapar das tecnologias de manipulação comportamental capitalista e da governança imperialista que com elas conspiram. Por isso, mais do que nunca, devemos permanecer presentes!

 

(1) Karima Lazali, Colonial Trauma, trad. Matthew B. Smith (Cambridge, 2021), 33.
(2) Albert Camus, The First Man, trad. David Hapgood (London, 1996), 141.
(3) Rolando Vázquez, Vistas of Modernity: Decolonial Aesthesis and the End of the Contemporary (Prinsenbeek, 2020), 8.
(4) Roxanne Dunbar-Ortiz, Not “A Nation of Immigrants”: Settler Colonialism, White Supremacy, and A History of Erasure and Exclusion (Boston, 2021).
(5) Ver, por exemplo: Felwine Sarr, Bénédicte Savoy, et. al., The Restitution of African Cultural Heritage: Toward a New Relational Ethics (Paris, 2018).
(6) Bernard Stiegler, Automatic Society, vol. 1, The Future of Work, trad. Daniel Ross (Cambridge, 2016).
(7) Aimé Césaire, “Culture and Colonization,” Social Text 28, no. 2 (2010), 127–144.
(8) Ver Bernard Stiegler “Digital Knowledge, Obsessive Computing, Short-Termism and Need for a Negentropic Web”, in Digital Humanities and Digital Media: Conversations on Politics, Culture, Aesthetics and Literacy, ed. Roberto Simanowski (London, 2016), 290–304.
(9) Para uma discussão seminal dos processos ininterruptos do capitalismo do século XXI, ver Jonathan Crary, 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep (New York, 2014).
(10) Marshall McLuhan durante uma sessão de perguntas e respostas ao vivo organizada por Australian Broadcasting Corporation em 27 de junho, 1977, disponível em: vialogue.wordpress.com/2013/04/02/the-medium-is-themessage-transcription/ (acesso em 4 de maio, 2022).
(11) Daniel Bougnoux, La Communication contre l’Information (Paris, 1995), 35. Todas as citações em francês são traduzidas pelo autor.
(12) Stiegler, Automatic Society, 75.
(13) Ibid., 122.
(14) Marc Azéma, La Préhistoire du Cinema: Origines Paléolithiques de la Narration Graphique et du Cinématographe (Paris, 2011).
(15) Frantz Fanon, The Wretched of the Earth, com prefácio de Jean-Paul Sartre, trad. Constance Farrington (New York, 1963), 52.
(16) Joseph Tonda, Afrodystopie: La Vie dans la Rêve d’Autrui (Paris, 2021), 15.
(17) Na fenomenologia da temporalidade de Edmund Husserl, a protensão refere-se a uma antecipação do momento seguinte – o momento que ainda não foi percebido. Ver The New Husserl: A Critical Reader, ed. Donn Welton (Bloomington, 2003).
(18) Shoshana Zuboff, The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power (New York, 2018).
(19) Fabian Scheidler, The End of the Megamachine: A Brief History of a Failing Civilization (Winchester, 2020).

O statement curatorial de Kader Attia está publicado no guia da 12ª Bienal de Arte Contemporânea de Berlim.

Tradução: Juliana Monachesi