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Postado em 17/12/2012 - 6:50
Relógio de pulso (1814 – cerca de 2005)
Giselle Beiguelman

Símbolo de uma cultura produtivista, o relógio de pulso foi fragmentado em tantos dispositivos que perdeu a função sem que ninguém sentisse sua falta.

Relogio

FOTO: The Canterbury Auct ion Galleries. Reprodução

Quando nasceu, o relógio de pulso era apenas um mimo feminino. Não de qualquer mulher, mas sim das mais finas e cheirosas da corte. Adereço sem função mais importante que a de enfeite de madame no século 19, virou coisa de macho depois da Primeira Guerra Mundial. Foram os militares de 1914 os seus primeiros pais adotivos.

Filho mutante do relógio de bolso, um antigo símbolo de poder e riqueza, teve como primeiro usuário ilustre o brasileiro Santos Dumont. A  aviação demandava que tivesse as mãos livres e seu não menos ilustre amigo, Louis Cartier, joalheiro, combinou um dos mais prestigiados modelos femininos de sua coleção a uma pulseira de couro.

Começava a saga do minúsculo tirano que algemaria distintas gerações ao mundo do trabalho.Os primeiros eram de corda e não contavam os segundos. Nos anos 1920, mais atléticos, já eram automáticos, sendo recarregados pelo movimento do braço. A grande revolução viria com os
netos, vitaminados com quartzo. Eles deram as caras nos anos 1960, na Olimpíada de Verão de Tóquio, paridos com ajuda do papai Seiko e da mamãe Epson.

Ganharam o mundo, miscigenaram-se e renasceram no formato digital, com LEDs, em um design que foi às telas no filme 2001, Uma Odisseia no Espaço (1967), antes de ser industrializado e distribuído para as massas. Mandão e opressor, tornou-se símbolo de uma cultura produtivista, em que a boa administração do tempo era considerada essencial para alcançar a riqueza. Foi eternizado em um conto amargo do escritor argentino Julio Cortázar – Preâmbulo às Instruções para Dar Corda a um Relógio.

Nele, o autor advertia que, quando você ganha um relógio, “não lhe dão um relógio, o presente é você; é você que oferecem para o aniversário do relógio”. Em meados da primeira década deste século, morreu esquartejado, fragmentando-se em telas de computadores, celulares, micro-ondas,
televisores e câmeras. Ninguém chorou a sua ausência.

Texto publicado no edição 08, outubro de 2012

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