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Au Naturel (1994), escultura que dá título à retrospectiva de Sarah Lucas no New Museum em Nova York (Foto: Sarah Lucas, Cortesia Sadie Coles HQ, Londres)
Postado em 24/01/2019 - 2:42
Sarah Lucas: Sem medo de ser vulgar
Com o feminismo como influência formativa, artista inunda sua obra de clichês de masculinidade e reverencia o pênis como forma totêmica
Vitoria Hadba
Escultura em cera Receptacle Of Lurid Things (1991), de Sarah Lucas (Foto: Sarah Lucas, Cortesia Sadie Coles HQ, Londres)

Há um número surpreendente de estudos no campo da psicologia que abordam a relação entre humor e sexo. Sigmund Freud, por exemplo, acreditava que indivíduos que possuíam impulsos sexuais reprimidos usavam o humor de cunho erótico como válvula de escape. Pesquisas mais recentes, entretanto, indicam o contrário. Assim como, nesses estudos, humor e sexo são pilares de sustentação no trabalho da artista britânica Sarah Lucas (1961), que em sua obra fala de sexo sem repressão, antecipando a discussão de gênero, sem medo de ser ambígua ou vulgar.

Por muito tempo Lucas foi considerada uma artista menor dentre os outros membros do grupo Young British Artists ou YBA. Seus dias de coadjuvante, porém, ficaram no passado, como demonstra sua primeira retrospectiva nos Estados Unidos, Sarah Lucas Au Naturel, no New Museum, em Nova York, em cartaz até 20/1/2019. Esse desinteresse inicial permitiu que Lucas desenvolvesse voz própria, sem medo de tabu ou censura, criando uma casca grossa em torno de si e de seu trabalho.

Self-portrait With Fried Eggs (1996), de Sarah Lucas (Foto: Sarah Lucas, Cortesia Sadie Coles HQ, Londres)

 

Igualmente durona é a feminista radical americana Andrea Dworkin (1946-2005), citada pela artista em diversas ocasiões como uma influência formativa. Dworkin era agressivamente contra a pornografia, batendo de frente com feministas ligadas ao movimento sexo-positivo, como a artista, educadora e ex-prostituta Annie Sprinkle (1954). Esse impasse de ânimos exaltados repercute no trabalho de Lucas através das formas divergentes, porém inegavelmente cômicas, em que a artista trata o sexo. Por exemplo, enquanto trabalhos como Seven Up (1990) ou Fat, Forty and Fabulous (1990) replicam imagens engraçadas de anúncios pornô com certa neutralidade, deixando para o espectador tirar suas conclusões sobre o embate entre a objetifição da mulher e a potência da afirmação sexual feminina; na obra Great Dates (1992), esses anúncios aparecem junto a notícias de estupro extraídas de jornais populares e a uma imagem da artista comendo uma banana enquanto encara a audiência, numa visão claramente sarcástica e trágica sobre o tema. 

Esse humor agudo, provocador, costumeiramente tido como imaturo, de mau gosto e masculino, permeia toda a criação de Lucas. Ela fala de sexo através da língua vulgar das ruas. Talvez esse linguajar possa ser explicado pelo ambiente em que a artista foi criada. Nasceu em uma família proletária e disfuncional em Londres, o que a levou a sair de casa aos 16 anos e se juntar aos squatters – jovens, por vezes associados ao movimento punk, que vivem em comunas ocupando prédios abandonados. Em uma de suas obras mais conhecidas, Au Naturel (1994), um pepino é usado para representar o pênis, enquanto dois melões funcionam como peitos, já em Sausage Film (1997), a artista come uma linguiça lentamente, enquanto controla o riso de maneira infantil e sádica. Seu repertório de trocadilhos instiga uma visão revisionista a respeito do corpo e do sexo e uma análise mais aprofundada sobre questões de gênero na vida e na arte. 

Great Dates (1992), colagem de anúncios pornô, notícias de estupros extraídas de jornais sensacionalistas e o autorretrato da artista Eating a Banana (1990) (Foto: Sarah Lucas, Cortesia Sadie Coles HQ, Londres)

 

Iconografia binária
A obra da artista é inundada de imagens clichês de masculinidade (cigarros, botas de trabalho e latas de cerveja), símbolos exacerbadamente óbvios de feminilidade e domesticidade estão igualmente representados (máquina de lavar, meia-calça, lingerie). Essa iconografia binária, por ser clichê, também é engraçada e naïf. A ambiguidade também está presente na maneira com que Lucas referencia a história da arte – apesar de óbvias, ela nega associações entre seu trabalho e o de artistas do passado, uma atitude no mínimo interessante. Sua série de figuras biomórficas NUD (2009-2013), em versão feita de meia-calça, alude ao trabalho da protofeminista Louise de Bourgeois (1911-2010). Ao mesmo tempo, outra versão da mesma série, feita em bronze polido, relaciona-se com os balões de Jeff Koons (1955) –maior exemplo do artista homem, branco e bem-sucedido. Essas sobreposições inesperadas e subversivas geram um hermafroditismo artístico. No embate entre esses dois polos, cria-se um enigma indecifrável e devorável: a artista, que se apresenta de maneira andrógina, que enche os pulmões para dizer que joga no time dos meninos e que a torção do sexo binário a fortalece, é a mesma que frita ovos e usa a mesa da cozinha, subvertida em estúdio, para sua produção.

Se nas esculturas Steely Dan (1993), e em grande parte da série Penetralia (2008-2013), o pênis é reverenciado de forma totêmica, não caberia aqui uma interpretação freudiana, ainda que vista por muitos como teoria obsoleta? Afinal, é possível identificar na obra de Lucas algum sintoma da inveja do pênis? Ou será que a doutrina do pai da psicanálise serve, sobretudo, ao deboche? Lucas acha Freud hilário.