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Postado em 03/10/2011 - 6:45
Sem título e incontível
Lucas Bambozzi

Exposições não dão conta de incluir a força de Istambul na arte

Select@istambul - 065

Crítica da sociedade do espetáculo nas colagens de Martha Rosler, em obra exposta na Bienal de Istambul. Foto: Lucas Bambozzi.

Este artigo não pretende insistir nos desgastes já existentes entre os diálogos entre uma arte dita tecnológica, midiáticos e a arte contemporânea – soberana, aquela que não requer rótulos ou especificidades. Mas também não pretende se esquivar das tensões e conflitos que certamente pairam em torno deste tema.

O encontro entre essas artes foi declarado como estratégico e oportuno, por Lanfranco Aceti, curador do ISEA2011 (Inter-society for Electronic Arts, fundado em 1990 na Holanda), que inicialmente também bienal, acontece em cidades muito distintas como Sydney, Paris, Cingapura, Belfast ou Istambul. A cidade acaba de uma forma ou de outra influindo no foco de cada edição, afetando humores e definindo formas de ver e entender o contexto local. Isso é naturalmente refletido pelo modo como as bienais de arte também criam um testamento político ou social em função da ‘geo-localização’ dos espaços e identidades culturais do país e/ou da cidade-sede. 

A idéia seria promover um cruzamento entre áreas que frequentemente se ignoram (ou se ‘esnobam’), mas que supostamente se interdependem. Esse encontro foi declarado por Lanfranco como um trunfo, pois ao longo de 20 anos de ISEA foi a primeira vez que este ocorreu concomitantemente com uma bienal de arte, a Bienal de Istambul

Se a confluência proposta por Lanfranco se mostrou viável em termos de calendário e em alguma intersecção espacial (numa cidade com 15 milhões de habitantes, os espaços, preenchidos por uma população efervescente, nem sempre são contíguos), as premissas de troca ou influência mútua, embutidas nos encontros, não se mostraram muito efetivas. 

Com 450 papers sendo apresentados, 60 workshops, 70 painéis de discussão e mais de 120 artistas e pesquisadores participantes (dentre os registrados), o ISEA e suas atividades formariam um grupo supostamente visível nos circuitos culturais e artísticos da cidade. Porém não foi essa a sensação constatada in loco pela maioria dos envolvidos. 

Impressões reincidentes

De um modo geral, a experiência proporcionada pelas exposições do ISEA causaram nitidamente mais vazio do que preenchimento, como se o mundo tivesse sido subtraído de sua capacidade de estímulo. A especificidade dos meios abordados muitas vezes ignora por completo outras sensibilidades e formas de entendimento da vida. Por sua vez, a experiência da Bienal cria um universo de construção simbólica notadamente mais amplo e completo, mas seu discurso parece visar mais o preenchimento do statement curatorial do que promover diálogos para além do campo do circuito da bienal. Ambos se tornam endêmicos, autodiscursivos. 

O público do ISEA se vê na obrigação cultural de se relacionar com a Bienal, em toda a perspectiva de troca que parece estar de algum modo prometida. Mas falta planejamento, sintonia e oportunidades concretas. E assim há pouco ou nenhum diálogo entre as partes. O público da Bienal por sua vez, sequer sabe o que vem a ser o ISEA, e desconfia uma vez mais de que a co-existência dessa ‘subcategoria’ seja estratégia equivocada de um nicho que divide ou coloca em competição visibilidade e recursos para a arte. 

A curadora Chus Martinez (curadora associada da 29ª Bienal de São Paulo 2010, curadora-chefe do MACBA, Museu de Arte Contemporânea de Barcelona) demonstrou surpresa sobre a existência de algo como o ISEA durante a semana de abertura da Bienal de Istambul. Rosangela Rennó, uma das artistas com solo project na Bienal, também não tinha conhecimento do evento. A artista Dora Longo Bahia, por sua vez notou os convites do eventos do ISEA junto ao material da Bienal, mas admite que lhe pareceram atividades com feições acadêmicas ou herméticas, incompatíveis com a perspectiva de experiência na cidade para quem tem poucos dias para conhecê-la ou senti-la de forma mais intensa. 

Claro que esses comentários, observados em conversas informais, não são indicadores significativos de desencontros crônicos – talvez ‘eventuais’ numa expansão do termo. Em São Paulo é comum acontecerem eventos correlatos, muitas vezes em um mesmo bairro ou ao longo de uma mesma avenida, e os envolvidos em um não terem conhecimento do outro. 

ISEA é também acrônimo para International Symposium on Electronic Arts. Ou seja, o grosso de seu ‘caldo’ é extraído na forma de conferencias, painéis, debates e workshops. As exposições ilustram um pouco essa produção, mais notadamente acadêmica, ou pelo menos amparada por pesquisas de universidades ou media labs ao redor do mundo. 

Os recursos, tanto para as viagens como para apresentação de trabalhos artísticos (e sua parafernália eletrônico-digital) tende a vir de cada interessado ou participante. De uma forma ou de outra também refletem uma prática de conotação ‘mercadológica’ que ocorre na arte contemporânea quando se trata de feiras ou determinadas bienais, onde a participação requer um investimento do artista, do galerista ou de uma instituição governamental. 

Sabendo-se desses bastidores, deduz-se que a produção mostrada nunca retrata de fato o que ocorre de mais espontâneo ou emergente, num modelo de baixo pra cima (grassrooots como se diria sobre uma produção menos amparada por recursos oficiais ou de mercado).

Uncontainable

A exposição principal do ISEA, intitulada Uncontainable (incontido, ou incontível), aconteceu em três espaços distintos, na região de Taksim, a mais intensa e turística de Istambul. A ambivalência do título é justificada em termos curatoriais como forma de expor as próprias contradições que o engendram, buscando dar conta dos “fluxos da cidade em suas camadas históricas, geopolíticas e contemporâneas”, como defende Lanfranco.

O eixo temático se desdobra em oito subtemas (Untitled, Broken Stilness, Hyperstrata, Second Nature, Terra Virtualis, Robot Incubator, The World is Everything and That is the Case), com trabalhos em meios e suportes tão distintos como telas LCD, superfícies hápticas, celulares, painéis de LED, plantas sonoras sensíveis ao toque, sacos plásticos infláveis, projeções de vídeo, malas que mimetizam humores, burcas equipadas com câmeras que nos amplificam para o espaço público, realidades aumentadas, imagens de síntese, nanotecnologia, etc. (Veja a reportagem de visual de Lucas Bambozzi sobre os dois eventos aqui).

São recortes ambiciosos, que buscam abraçar o leque de possibilidades existentes hoje. Mas em meio a tanta mudança de assunto, uma sensação possível é a de que a tecnologia aparece como a superfície mais constante, como se perdesse a capacidade de ser uma ferramenta a viabilizar a articulação dos saberes do mundo — ou como se ela não fosse também um desses saberes. 

Assim, creio que para a maioria do público e em muitos dos trabalhos, a curiosidade supostamente despertada pelo meio não mais atrai, mas anestesia a inteligência. O conjunto reunido nos atiça especular sobre a conveniência dos trabalhos apresentados, não exatamente a convicção de sua escolha.

Cerca de cinco outras exposições e uma série de performances foram montadas de modo a complementar esse eixo, com projetos ambiciosos e atividades que aconteceram em espaços bem pouco convencionais como em dois passeios de barco e numa tradicional casa de banho turco (Çemberlitaş). 

Aqui algo diferente ocorre, quando nos dispomos a buscar sentido nas obras, independentemente do cenário sedutor da cidade. É como se faltasse algo, ou melhor dizendo (em algum momento sutil isso se torna claro) sentimos que a ‘ambiência’, o cenário, se sobrepõe aos projetos apresentados. Nos sentimos confusos em nossa eleição do protagonista. As performances não dão conta da complexidade da cidade, e aparecem minguadas não apenas em escala, mas em proposta. 

Seria necessário um convívio maior com tais cenários, espaços e lugares, que nos tomam e insistem em atiçar nossa ignorância e sede de conhecimento. 

Sim, a contemporaneidade e sua complexidade estão ali, mas em uma vertente rasa, pincelada em objetos e produtos que passam a nos remeter a protótipos que buscam formas divertidas de existir e disputar por nossa atenção. 

Para essas obras acontecerem, talvez tivéssemos que nos proteger do que mais queremos: entender esse povo, a transformação espetacular de Bizâncio em Constantinopla, entender os porquês da grande Istambul, da passagem ritualística entre os mares mediterrâneo e negro, de estarmos entre mundos, e claro, o porquê de querermos nos fechar em uma caixa para vermos uma arte que, apesar de todos os esforços, parece incompatível com tudo isso. 

Untitled

A 12ª edição da Bienal de Istambul aconteceu prioritariamente na Istanbul Modern, em apenas dois prédios, perfazendo três pisos moldados por paredes sempre iguais, laminadas e revestidas em gessso acartonado — prece ter sido preciso essa ‘separação’ da cidade, como uma espécie de trégua para a percepção.

Poucos questionam o discurso político bastante claro e bem amarrado em torno da bienal articulado pelos curadores Jens Hoffmann (Costa Rica) e Adriano Pedrosa (Brasil). Parece ser consensual também o fato dela ter sido realizada de forma econômica e enxuta. Tendo o trabalho do cubano-americano Felix González-Torres como uma moldura conceitual, em especial a partir de sua série Untitled, que empresta título e conceito visual para a exposição. O viés político é visto ainda como aptidão ou premissa de uma série de bienais que ocorrem em países menos ricos, o que se reflete na mostra na Turquia.

Mas o recorte sugerido a partir do corpo da obra de Gonzalez-Torres não chega a apontar caminhos muito contemporâneos – para alem da referência ao artista. Pelo contrário, constitui um apanhado histórico por vezes didático e amparado em trabalhos dos anos 1970 como Shoot (1971), de Chris Burden, ou colagens de Martha Rosler (1967-72). A contextualização se estende ainda pelas fotos de Wegee, Tina Modotti (anos 40) ou Roy Lichenstein, todos já falecidos. 

As salas especiais de Leonilson (1957-1993), Rosangela Rennó (Imemorial, de 1994 e 2005-510117385-5, de 2008) e Renata Lucas (Falha, de 2003) que dariam peso ao comentário mais contemporâneo, não são também muito recentes – apesar do brilho que emprestam à curadoria. Com raríssimas exceções (Renata Lucas e Rivane Neuenschwander por exemplo), em toda a exposição, predomina a lógica do trabalho pendurado na parede ou caixas de estilo museológico. Não se arrisca em busca de novas possibilidades expositivas ou formatos. 

Mesmo vídeos, há muito pouco poucos. Para Cynthia Beth Rubin, uma participante ativa dos ISEA desde sua fundação, “causa espanto o fato do meio digital ser suprimido quase por completo da Bienal, como se política e arte não pudessem ocorrer nesse campo.”
O mundo do digital e das redes, que nos afeta, nos oprime ou nos viabiliza a vida nas grandes cidades, não existe. [1]

Percorrendo os espaços da Bienal vamos notando o quanto a tecnologia, tão presente em nossas vidas (pelo bem ou pelo mal, um fenômeno difícil de ser ignorado), não aparece, mesmo que nosso caminhar pelos espaços expositivos sejam penetrados por câmeras sendo disparadas a cada segundo, como blocos de notas imagéticos, ou pela invasão do público pelo privado ocasionado pela presença massiva de celulares.

Talvez pela economia de suportes mais contemporâneos, no conjunto da Bienal se sobressai de forma tão contundente o vídeo Tomorrow Everything Will be Alright (2010) de de Akram Zaatari, que sintetiza os conflitos mais atuais da comunicação instantânea mesmo sem entrar na obviedade de retratar um Facebook ou Twitter – difícil não refletir sobre a suposição de que os curadores muitas vezes deixam escapar a atualidade pelo receio de caírem em modismos. 

Patrick Lichty, artista, curador e crítico, aponta como seu favorito os trabalhos de Antoni Muntadas de recriação de situações históricas, evidenciando não não exatamente certas manipulações ideológicas em fotografias, mas tentativas de reconstrução da própria realidade – contexto já apontado por Muntadas em outros meios, sempre friccionando os campos da arte e da comunicação.

Algum lugar melhor do que este [2]

Assim, de um modo ou de outro, saímos da Bienal de Istambul bem informados, gratificados pela facilidade como nos locomovemos entre os espaços planos e limpos. Alguns agradecem inclusive o fato de haver poucos vídeos, que roubariam tempo precioso para se chegar ao final da exposição sem sinais de fatiga. E quando vemos que, somado ao preço do ingresso despendemos apenas 5 liras turcas (cerca de 4 reais!) pelo catálogo, um ótimo guia pelos espaços da exposição, enxuto porém essencial em suas 350 páginas, nossa alegria se contrasta com uma sensação um tanto menos vitoriosa que experimentamos ao percorrer os desconexos espaços do ISEA. 

Essa alegria se alinha com a imediata re-conciliação com o espaço aberto e a luz lá de fora, onde vibra o fabuloso cenário da cidade de Istambul. É isso o que de fato mais compete com nossa atenção, tempo e bolsos – e todos nós turistas-artistas em busca de consumir arte, nos vemos capturados mais pela cultura e pela história e menos pelo contemporâneo. 

Dadas as experiências de arte que nos ofereceram, em algum momento, tendemos a pensar que de uma forma ou de outra, pela tecnologia ou pela arte dita contemporânea, mos anularam as melhores possibilidades de experiência na cidade. Buscar uma arte que contemple isso seria buscar também uma especificidade – um nicho de atuação, uma categoria?

Chegamos a uma comparação crítica que oscila entre duas possibilidades: um espaço protegido que fala de política de forma quase alienada; uma quantidade de espaços preenchidos com meios eletrônicos onde as obras funcionam quase como estorvo.
Istambul impressiona. O que pode a arte diante da potencia, do caos e da complexidade de uma cidade como essa? – é uma pergunta que certamente ocupa muitos artistas.

Lucas Bambozzi é um artista que se dedica à exploração crítica de novos formatos de mídia. Viajou a Istambul como participante do ISEA2011 e para trabalhos de curadoria do Eletronika/Vivo arte.mov.

Notas

[1] Curiosamente, um dos poucos trabalhos a promover uma conexão política entre a rica história de Istambul e a Bienal veio pelo lado do ISEA, no programa Invisible Istanbul. Através de técnicas de Realidade Aumentada (confesso não nutrir muitas euforias com essa tecnologia) o projeto traz de volta antigas imagens do espaço da Bienal para quem percorre o espaço com algum um aparelho Android ou iPhone4. O folheto nos incita: “ao abrir o aplicativo, olhe à sua volta, para baixo e para cima, o que você procura pode estar inclusive atrás de você”. Aí vemos que a Bienal acontece em um local onde já operou antes uma fábrica de munição bélica, percebemos contradições que o espaço não nos conta de imediato. Essa seria uma suposta qualidade dos meios locativos, a de fazer ver o invisível, mas sem se desconectar da realidade imediata. Como notou Patrick Lichty, o que mais o impactou no ISEA, foi o crescimento das mídias locativas e realidade aumentada, bem como a preocupação com o urbanismo, como um discurso prevalecente nessa edição do evento.

[2] Referência a Somewhere Better Than This Place, Nowhere Better Than This Place (1990), obra de González-Torres criada para ser reproduzida como “original” em impressão tipo offset, e distribuída em infinitas copias.

Veja a reportagem visual de Lucas Bambozzi sobre o ISEA2011 e a Bienal de Istambul