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Postado em 19/10/2012 - 8:57
Sob a luz do camburão
Ronaldo Bressane

Atual diretor de peteca do Corinthians, Zé Maria da Silva foi o maior fotógrafo de ocorrências policiais da história do jornalismo brasileiro

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Legenda: Super Zé, repórter fotográfico do Notícias populares durante 30 anos, acompanhou a evolução da fotografia: clicou em preto e branco, tem cores, mas não chegou ao digital (Foto: Fernando Costa Netto)

Repórter fotográfico do Notícias Populares durante 30 anos, José Maria da Silva, o Super Zé, foi o cara que mais clicou cadáveres fresquinhos na história do jornalismo brasileiro. Não pense que isso fez de Zé um sujeito amargurado, depressivo, baixo-astral. Pelo contrário. Ele recebe a seLecT em sua casa, nas imediações do Parque São Jorge, território corintiano, todo empoeirado e com resquícios de cimento nos chinelos: aos 60 anos, resolveu fazer uma baita reforma na casa, abrir uma laje pro churrasco com os amigos, aumentar a cozinha, quebrar escadas… é que, aposentado das lentes, sua grande atividade hoje é ser diretor de peteca do Corinthians, onde dá expediente três dias por semana.

Mas Zé é indissociável do NP, onde trabalhou até a edição 13.413, a última, publicada em 20 de janeiro de 2001. Foi o primeiro fotógrafo brasileiro a clicar a vida bandida nos confins da metrópole, onde levava sua Leica M8. No começo, batia tudo em preto e branco; mais tarde, vieram as cores e o flash; aos poucos, porém (ou melhor, aos muitos e muitos cadáveres), Zé Maria iria encontrar sua linguagem, sem flash, com altos contrastes e sombras dramáticas. “A gente percebeu que, pra dar mais precisão ao contorno do morto a melhor luz era a de automóvel”, explica. Pedia à viatura policial ou ao motorista que o levava à ocorrência para jogar luzes enviesadas sobre o cadáver. Isso, curiosamente, fazia com que as imagens, hoje vistas fora de seu registro de jornal, ganhassem contornos irreais. “O que eu mais adorava era quando fazia cerração. Com garoa, então, eu me esbaldava”, conta.

Carregava dez filmes de 36 poses por noite: se o caso rendesse, clicava todo o filme. E pra dormir, depois do trampo? “Uma época fiquei meio deprimido, sonhava com o próprio trabalho, coisas estranhas… Teve uma vez que um morto veio me visitar em casa, pedindo que eu o fotografasse. Mas essa fase durou só uns dois anos, depois voltei ao normal, sempre xingando um bem-te-vi desgraçado que cantava na minha janela”, conta o fotógrafo.

Não é brincadeira: Zé Maria calcula ter fotografado milhares de crimes. Nos anos 1970 e 1980, ainda sob o domínio dos grupos de extermínio, os bairros da periferia paulistana eram frequentemente cenários de chacinas. “Cheguei a ir em três massacres na mesma noite. Cliquei uma família toda uma vez”, conta. Momentos insólitos eram corriqueiros. “O pessoal era muito, muito humilde, você não tem ideia. Uma vez me disseram que eu não poderia tirar foto… porque não tinham como me pagar! Mas o mais forte foi um caso em que o garoto havia sido assassinado e ainda estava jogado no meio da sala, aquela sangueira toda, e a mãe, pra receber a gente bem, foi passar um cafezinho. Fazer o quê? Ficamos todos tomando café com o filho morto nos olhando.” Apesar de tanto mergulho na barra-pesada, instantes de diversão também apareciam. “Quando o crime era num boteco, a gente sempre terminava de tomar a cerveja pela metade do morto”, lembra Zé Maria.

Tiros, facadas, enxadadas e enforcamentos eram os mais frequentes, mas Zé se lembra de uma história que rendeu uma das manchetes mais divertidas do jornal: “Morreu de metal pesado”. É que o sujeito havia sido assassinado com uma picaretada na cabeça. “A banda Sepultura quis usar a foto pra fazer uma camiseta, mas parece que a gravadora achou meio pesada demais”, ri o boa-praça Zé Maria.

Fernando Costa Netto é jornalista e fotógrafo e um dos fundadores da revista Trip, onde foi repórter especial e diretor de redação (1986-1992). Cobriu três conflitos armados: El Salvador (1989), Bósnia (1993/1994) e Palestina (2001). Idealizou a Mostra SP de Fotografia e é sócio proprietário da DOC Galeria + Escritório de Fotografia.

* Publicado originalmente na edição impressa #8. Leia também A Sangue-quente