No momento em que Regina Silveira inaugura Inusitados, intervenção sobre a Coleção Ivani e Jorge Yunes, e Celina Portella abre a mostra Manobras, na galeria Zipper, o número de queimadas na Floresta Amazônica é o mais alto em uma década e o Pantanal tem seu pior ano desde o início dos registros, em 1998 (dados do Inpe). A abertura das duas exposições ocorre no fim de semana histórico em que Donald Trump é queimado (liquidado) do mapa dos Estados Unidos, o que nos leva a pensar sobre os sentidos da palavra queimar.
Carbonizar
Fired foi uma das palavras mais tuitadas do sábado 7/11, quando a derrota de Trump nas eleições norte-americanas foi oficializada. Com a demissão do republicano, são reprovadas suas políticas permissivas à emissão de gases poluentes causantes do aquecimento global; e de fomento ao racismo, à xenofobia e à polarização social.
A representação do futuro ex-presidente dos EUA ardendo em chamas na capa da semanal italiana L’Espresso – com a chamada de capa Fired! – evoca o destino que tiveram recentes secretários da Cultura aqui do Brasil, reduzidos a cinzas após fazerem apologias ao nazismo e à ditadura militar, e serve de sinal aos governantes coniventes com a devastação ambiental e as diversas escalas e categorias de crime cultural e social.

Fogo/3 e Flama/3 (2020), de Celina Portella (Foto: Divulgação)
Afetar
Na individual de Celina Portella, o fogo é utilizado como um meio de esgarçamento da imagem fotográfica, até sua destruição. Se em Queimadas (2020) a artista exercita uma “queima controlada”, buscando certo planejamento das áreas do papel consumidas pela chama, no vídeo Fogo-fátuo (2020), o corpo que risca o fósforo é o agente da completa eliminação da imagem. E em seu total desaparecimento, instaura a metáfora da terra arrasada.

Queimadas (2020), de Celina Portella (Foto: Divulgação)
O que se entrevê nos rastros das Queimadas de Portella são as demarcações do imponderável: os deslimites entre a impossibilidade de controle da natureza e a ausência de escrúpulos da ganância humana.
Arder
Os desígnios de Regina Silveira sobre as peças de uma coleção particular, dentro do projeto Caixa de Pandora, são vários e paradoxais. Ao utilizar um dispositivo de Realidade Aumentada para atiçar fogo sobre uma liteira do século 18 (Paraqueima, 2020) e sobre quatro cabeças escultóricas que representam as artes clássicas (Des-Igneos, 2020), a artista lança luz sobre os desastres que periodicamente arrasam patrimônios históricos e artísticos no Brasil. “O fogo pode também ser entendido como uma maneira de denunciar as queimadas atuais, assim como o ato pateticamente autoritário dos ditadores que, ao chegarem ao poder, tomam como primeiro desígnio, destruir a cultura”, aponta o crítico Marcio Doctors, no texto Da Certeza do Mal.
“Regina usa a mesma estratégia dos ditadores ao colocar fogo na coleção, como um jeito de provocar uma reflexão sobre a atitude do colecionador que, muitas vezes, até por motivos ingênuos, pode reunir ‘obras de arte’ como se fossem troféus, sem nenhum comprometimento com a realidade política, ideológica, social e artística que os geraram”, continua Doctors, lembrando também a pulsão da produção artística de Regina Silveira em direção aos espaços públicos.

Paraqueima (2020), de Regina Silveira (Foto: Divulgação)
Entre os quatro muros da coleção Yunes, a fogueira virtual de Silveira é uma lente de aumento que delineia, com lucidez e discernimento, realidades nem tão claras. Problematiza a apropriação da arte pelo universo privado, buscando restaurá-la como conhecimento sensível do mundo. E o projeto da instituição que recebe a instalação é corajoso ao promover essa reflexão.
Iluminar
Com isso, não evoquemos as fogueiras das vaidades, mas o fogo das celebrações. Em torno do quais se canta, se faz música, se dança, se espanta as trevas e se faz a luz. Onde se consagram atos criativos, se reduzem os elos monetários, se refazem os elos comunitários e reúne-se para acalentar melhores dias.