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Postado em 19/06/2012 - 10:16
Sucessos e excessos da Documenta 13
Angélica de Moraes, de Kassel

A maior mostra de arte contemporânea do planeta tem duas obras em sound art de Janet Cardiff entre seus destaques

Documenta13

Legenda: Monumento Momentâneo, de Lara Favaretto: acúmulo de sucata utilizada para repensar o lugar da escultura na atualidade e que os críticos da Documenta utilizaram como sinônimo de caos (Foto: Angélica de Moraes/seLecT)

Ninguém pode alegar que não foi avisado. O aviso está lá, no subtítulo da Documenta (13): A dança é muito frenética, animada, agitada, barulhenta, para rolar e se contorcer e dura muito tempo (The dance was very frenetic, lively, rattling, clanging, rolling, contorted and lasted for a long time). Assim como o quilométrico subtítulo, os espaços a serem percorridos são os mais extensos jamais vistos na história desse evento, que ocupa a cada cinco anos a pequena cidade alemã de Kassel e a transforma na sede da mais importante mostra periódica de arte contemporânea realizada no planeta.

Entre uma e outra longa caminhada entrecortada por ansiosa busca no mapa pela localização exata das mostras espalhadas pela cidade no melhor estilo caça ao tesouro, os freqüentadores veteranos de outras edições e outras décadas sentiram saudades da concisão de outrora. Nos seus primórdios, tudo acontecia apenas no Fridericianum Museum. Não havia catálogos pesando como chumbo e, quando muito, um ou outro texto pequeno nas paredes. Sim, o mundo anterior ao tsunami imagético e verborrágico do século 21 por certo parecia mais rapidamente inteligível.

Apenas parecia, claro. Porque estava quase todo circunscrito a uma visão eurocêntrica. Mas esta dança agitada e cosmopolita coreografada pela curadora Carolyn Christov-Bakargiev (CCB) e sua equipe com artistas vindos das mais diversas culturas e latitudes tem fascínio redobrado. Revela muitas obras excelentes a cada dia de jornada. E muitas bobagens inomináveis, claro. São os riscos do excesso. Que continuam na centena de publicações teóricas oficiais e nas centenas de outras que já motivaram e ainda vão motivar.

E que ninguém venha enunciar aquela ilusão de outrora: “entendi tudo”. Não, impossível entender tudo ou sequer ver e ler tudo no tempo necessário para a fruição adequada de seus conteúdos. Nesse sentido, a Documenta 13 demonstra e espelha à perfeição o espírito do nosso tempo: nossa cotidiana ansiedade e angústia com o tanto que precisamos saber e fazer e o pouco tempo que temos para isso. O excesso de informações nos sobrepassa e nos inunda, nos confunde e nos arrebata.

Há por toda mostra uma cuidadosa e competente escavação de vários tempos históricos, tanto da cidade de Kassel (que, por ter sido centro estratégico das tropas nazistas, quase foi riscada do mapa pelos bombardeios aliados na Segunda Guerra Mundial) quanto da própria história da Documenta. Não por acaso filha de arqueóloga, CCB costurou boa parte dos nexos curatoriais à partir da articulação entre camadas de memória. É assim que pontua todo o percurso com obras exibidas em edições anteriores da Documenta, estabelecendo vivos diálogos entre dois momentos estéticos, geralmente o embate entre modernismo e contemporaneidade mas também até entre peças da antiguidade mesopotâmica e obras recentes.

Uma falha recorrente nesse tipo de evento: sobraram poucos espaços e atenção para a arte tecnológica ou de meios eletrônicos. Mas há exceções nesse setor que garantem algumas das melhores atrações de todo evento. Nessa brecha e ocupando o lugar das coisas sublimes e inesquecíveis desta Documenta (13) estão as duas obras em soud art de Janet Cardiff. Ambas promovem uma radical transformação em nossa percepção de espaço e tempo, resignificando o aqui e agora ao grudá-lo ao passado recente ou histórico.

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Legenda: Sound art da artista canadense Janet Cardiff criou atmosfera sonora no parque Karlsaue, em Kassel (Foto: Angélica de Moraes/seLecT)

Uma das obras de Cardiff, feita para ser fruída com headphones e olhar atento à tela de um iPhone, transmite instruções para percorrermos um trajeto preciso pelo interior da antiga estação ferroviária de Kassel. Somos atravessados pelo som e pelas imagens de pessoas e freqüentadores do local em tempo recente, em exatos lugaresonde agora estamos, o que promove a ilusão perfeita de uma vivência temporal dupla. O recente passado e o tempo presente que vivenciamos se misturam. Personagens exibidas na telinha do iPhone se expandem em sons a nossa volta, criando a urgência de nos desviarmos do que parece que irá colidir conosco ou que nos cobra interação. O desfecho, com um casal de bailarinos, remete a uma delicada poesia do encontro, que aponta o futuro.

A outra sound art da artista canadense tem registro oposto. É pesadamente trágica. Ambientada em um trecho de mata fechada do belo Karlsaue, o enorme parque que margeia o rio Fulda e emoldura o castelo Orangerie, ela nos remete ao pesadelo do bombardeio à cidade e se dá pela colocação de caixas de som no ambiente natural. O assovio tétrico das bombas V2 antecedem o impacto e as explosões que ressoam pelo ambiente. O ruído das correntes e dos trens recordam o transporte de judeus aos campos de concentração e extermínio (Kassel era um dos pontos de passagem dessas tristes cargas). Há tiros e o som surdo de um corpo caindo ao solo. Súbito, em meio ao silêncio da destruição, emerge um belíssimo canto coral gregoriano, que transforma a mata em catedral gótica pela verticalidade da luz natural filtrada pelas altas copas das árvores. Ao cair da tarde de um luminoso dia de verão essa potência evocativa proposta pela artista é ainda mais pungente.

Com certeza essa é uma das obra que mais emociona. Emoção que só é despertada por grandes e indiscutíveis obras de arte. Aquelas que estão muito acima de qualquer bula teórica porque falam essencialidades que dispensam palavras. Esta sound art, ainda mais, por ser capaz de transformar um dos mais terríveis pesadelos da humanidade em antesala para o sublime que ainda e sempre habita e habitará o ser humano. O crítico e historiador de arte alemão Arnold Bode, que criou a Documenta em 1955 exatamente para exorcizar o passado nazista e reafirmar a tradição humanista da cultura alemã, certamente iria se emocionar com a obra de Cardiff.

Este é o primeiro de vários relatos sobre a Documenta que SeLecT irá publicar nas próximas semanas. O excesso é necessário para, pelo menos, elencar algumas das muitas reflexões que a mostra excessiva provoca. A Documenta estará em cartaz até 16 de setembro em Kassel e, depois, em Kabul (Afeganistão), Alexandria (Egito) e Banff (Canadá). Extensões também inéditas de uma mostra que repensa seu formato e abrangência, refundando sua importância.

Saiba mais:

Documenta13