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(Foto: Cortesia Art Basel)
Postado em 08/05/2017 - 12:38
Supercuradores
Por que os curadores são os mais valiosos intermediários nas transações do mercado de arte global
Felipe Martinez

Poucos mercados são mais etéreos do que o mercado de arte contemporânea. Pela natureza de seus produtos, muitas vezes obras de arte imateriais, e pela dificuldade de se encontrarem bases sólidas para definir critérios de valor, esse mercado acarreta problemas jurídicos e econômicos intrincados. Mesmo com o recente desenvolvimento de indicadores e instrumentos para análise, a falta de solidez ainda persiste. A despeito disso, o mercado de arte mundial movimenta bilhões de dólares todos os anos, e passou por um vertiginoso crescimento nas duas últimas décadas.

Tal crescimento se explica, em boa medida, pela modificação do perfil das grandes feiras de arte desde fins dos anos 90. Elas passaram então a contar ativamente com a presença de curadores e com inovações, cuja intenção seria afastá-las de seu caráter puramente comercial. Nesse processo, grandes feiras, como a ARCO ou a Art Basel, foram as primeiras a criar seções especiais com curadoria específica. Organizaram também palestras e debates com personalidades do mundo artístico como parte de sua estratégia de mercado, tornando-se grandes eventos capazes de rivalizar com os principais acontecimentos do calendário artístico mundial. Situação que parece oferecer às obras à venda uma aura de sofisticação e inteligência, agregando valor aos produtos disponíves.

Obras de Alicja Kwade e Pedro Cabrita Reis na concorrida abertura da seção Unlimited da Art Basel 2016 (Foto: Cortesia Art Basel)
Obras de Alicja Kwade e Pedro Cabrita Reis na concorrida abertura da seção Unlimited da Art Basel 2016 (Foto: Cortesia Art Basel)

Desse modo, a presença dos curadores nas grandes feiras de arte foi um passo fundamental para elevá-las do puro e baixo comércio para as alturas de sofisticados eventos artísticos. Assim funcionam hoje as grandes feiras como a londrina Frieze ou a Art Basel, importantes nesse circuito: elas contam com debates sobre arte, dos quais participam destacados nomes do cenário mundial. Entretanto, mesmo com o aspecto de importantes espaços para a discussão de ideias e tendências na arte contemporânea, as feiras de arte têm como objetivo último o comércio das obras. A reflexão existe, mas comprometida pela íntima associação entre uma coisa e outra.

A última edição da Art Basel Miami Beach, ocorrida no fim de 2016, teve como principal atração a presença do todo-poderoso curador suíço Hans Ulrich Obrist, responsável por organizar conversas e debates com artistas que considerava importantes. Não por acaso, Obrist figura no topo do tradicional ranking dos mais poderosos do mundo da arte, estabelecido pela revista Art Review (Obrist já havia ocupado o primeiro lugar em 2009 e, desde então, nunca deixou o Top 10). O curador, célebre por sua incansável rotina de trabalho e por utilizar as redes sociais, como o Instagram e o Twitter, divulgando as ideias e os artistas pelos quais se interessa, recentemente declarou em entrevista ao jornal The New York Times ser um curador de “intenções, ideias e artistas” mais do que de obras de arte. Assim, seu interesse primordial são os artistas, suas ideias e suas intenções: as obras vêm depois. O curador incorpora a criação ajudando a transformar intenção em arte.

Hans Ulrich Obrist, que se autodefine “um amador de intenções, ideias e artistas” (Foto: Reprodução, Flickr)
Hans Ulrich Obrist, que se autodefine “um amador de intenções, ideias e artistas” (Foto: Reprodução, Flickr)

A declaração de Obrist é reveladora dos caminhos da arte na modernidade. Os objetos artísticos e os suportes tradicionais foram para o segundo plano. Com isso acentua-se uma importante característica já presente no mercado de arte desde o século 19: a valorização da subjetividade dos artistas em detrimento da materialidade das obras. Tal princípio já aparecia nas práticas comerciais de Paul Durand-Ruel, o grande marchand dos impressionistas. Ele promovia a subjetividade de seus artistas como um valor em si, de modo que era mais importante ter “um Monet” do que uma “simples” paisagem pintada pelo artista. Desse modo, a importância da subjetividade criadora vem antes do próprio objeto na definição dos valores das obras. Ironicamente, vale lembrar o velho tema iniciado no romantismo e muito presente na arte conceitual do século 20: a fuga do objeto arte como fuga da arte mercadoria, ideia, por exemplo, presente no manifesto do Grupo Fluxus de 1963.

Vasari contemporâneo
É significativo de nossos tempos que Obrist tenha lançado sua Vida dos Artistas, Vida dos Arquitetos, nome que imediatamente remete à obra de Giorgio Vasari, lendário historiador do Renascimento. Sem nenhuma formação em História da Arte, Obrist, assim como Vasari, representa o homem de seu tempo escrevendo sobre os artistas e a arte de seu tempo.

A figura de supercuradores como Obrist não pode ser compreendida sem que se entenda a dinâmica do mercado. Ainda que não ajam diretamente em galerias comerciais, as opiniões que exprimem e as tendências que ditam têm o poder de direcionar e balizar a atribuição de valor às obras de arte, já que indicam quais artistas – e não obras, é bom lembrar – são promissores ou não. Na prática, ser o curador de ideias e intenções é poder definir quais ideias e quais intenções são dignas de ser artísticas e, por conseguinte, de adquirir valor de mercado. Diferentemente de um investidor ou um consultor de mercado, o curador não somente tem grande importância na identificação de quais ativos devem ser comprados ou destacados, mas também é capaz de agregar valor à própria arte.

O exemplo de Obrist faz pensar se há limite para a atuação de curadores no mercado, e de que modo os curadores atuais passam, cada vez mais, a assumir o papel de um broker, capaz de definir valores e padrões de mercados e – por que não? – de se beneficiar diretamente dos valores transacionados. Informações a esse respeito, entretanto, são escassas e persiste a atmosfera obscura sobre os valores e os participantes das transações. O mercado de arte é um mercado com pudores a respeito de sua própria natureza comercial, como se a arte importasse mais que o dinheiro.

O texto que introduz o ranking dos 100 mais poderosos da revista Art Review, no qual Obrist ocupa o primeiro posto, diz sem subterfúgios que essa classificação se destina a revelar quem decide qual tipo de arte será visível ou não e, portanto, quem é o mais poderoso ao definir os valores estéticos e monetários da arte nos dias de hoje. Não é preciso grande esforço intelectual para entender que ambos – estético e monetário – são indissociáveis. Assim, a aparência progressista dos discursos de curadores e a roupagem sofisticada das galerias são parte de uma estrutura de produção e comercialização de obras de arte em nossos dias. Na lista dos poderosos da revista Art Review deste ano aparecem os nomes brasileiros da galerista Luisa Strina e do trio formado por Felipe Dmab, Pedro Mendes e Matthew Wood, responsáveis pela galeria paulistana Mendes Wood DM (respectivamente, posições 57 e 91), todos diretamente ligados ao mercado e entendidos não exatamente como galeristas, mas como uma espécie de viabilizadores da arte.

Fachada da Serpentine Gallery, em Londres (Foto: John Offenbach, Serpentine Gallery)
Fachada da Serpentine Gallery, em Londres (Foto: John Offenbach, Serpentine Gallery)

O poder dos curadores não traz benefícios somente no que diz respeito às questões de mercado. A visibilidade e o status de Hans Ulrich Obrist foram, sem dúvida, benéficos à galeria Serpentine, instituição da qual é diretor artístico, e que teve um expressivo acréscimo no número de visitantes nos últimos anos. Recentemente, algo parecido ocorreu em terras brasileiras com o atual diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa, presente três vezes na lista dos poderosos da Art Review (2012, 2014 e 2015). É inegável que a visibilidade de Pedrosa tenha contribuído para a reestruturação do museu paulista.

Um erro comum ao analisar o mercado de arte contemporânea é a ingênua separação entre mundo artístico, no qual o curador supostamente deve agir, e mundo comercial, território de colecionadores e galeristas. Na arte do século 21, os dois mundos estão intimamente conectados e não se pode entender um sem que se entenda o outro. Antes de ser uma questão ética, a centralidade da figura do curador na dinâmica do mercado de arte é um sintoma da própria importância do mercado para o funcionamento do sistema das artes. Em um mundo onde curadores têm o poder de legitimar ideias e intenções, nem todo mundo é artista, ao contrário do que diz a máxima de Joseph Beuys, e nem toda arte pode ser vendida. Trata-se, sem dúvida, de um poder de mercado capaz de dar inveja a qualquer investidor ou agência de risco.