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Isabél Zuaa (no papel da diretora Isa) dirige os atores Camila Mota (no papel de Virgília), Germano Melo (Brás Cubas) e Kelner Macêdo (amigo de Brás Cubas), em ensaio do velório de Memórias Póstumas para o filme Ensaio (2018), de Tamar Guimarães, comissionado pela 33ª Bienal de São Paulo (Foto: Cortesia da Artista)
Postado em 25/09/2018 - 3:48
Tamar Guimarães: remexer histórias
Modernismo, espiritismo, autoridade e sistema da arte são alguns assuntos explorados criticamente nos filmes da artista
Márion Strecker

O ponto de partida de Tamar Guimarães é sempre uma pesquisa, na qual mergulha para devolver depois com reflexões e aproximações críticas na forma de uma projeção de slides, um áudio, um filme ou uma exposição. Mas, atenção: ela não acredita em arte como ferramenta para “revelar verdades”.

Nascida em Viçosa (MG) em 1967, Tamar saiu do Brasil com 20 anos para se aperfeiçoar no violino. Estudou música em Jerusalém, Basel e Londres por seis anos, de 1987 a 1992, antes de decidir mudar o rumo profissional de sua vida. Em 2002, formou-se em artes plásticas no Goldsmiths College, em Londres. Depois, o mestrado na Malmö Art Academy, na Suécia, e um segundo mestrado na Academia Real de Artes Plásticas da Dinamarca, onde decidiu viver, quando não está viajando. “Sem a Danish Arts Foundation não teria o meu trabalho”, diz à seLecT.

Hoje, obras de Tamar Guimarães estão em coleções como Tate Modern (Londres), Museo Nacional Reina Sofía (Madri), Guggenheim (Nova York), Guandong Museum (China) e Inhotim (Brumadinho, MG). Ela expôs em museus, galerias e festivais na Europa, nas Américas, no Oriente Médio, na Ásia e na Oceania. Já participou da Bienal de Veneza (duas vezes), de Gwangju (Coreia do Sul) e de Sharjah (Emirados Árabes). Volta agora pela terceira vez à Bienal de São Paulo, onde esteve em 2010 e 2014.

Canoas (2010), filme de Tamar Guimarães ambientado na residência moderna que o arquiteto comunista Oscar Niemeyer construiu para uso próprio no Rio de Janeiro nos anos 1950; na cena, a anfitriã aparece na piscina dando ordens à empregada doméstica negra e uniformizada, onde mais tarde acontecerá uma festa elegante (Foto: Cortesia da Artista, Fortes D’Aloia & Gabriel)

Em 2010, apresentou o filme Canoas, de 13’30’’, ambientado na belíssima residência que Oscar Niemeyer projetou para si no começo dos anos 1950 e depois virou cenário para gravações e desfiles de moda. O filme foi produzido com atores e não atores, incluindo pessoas conhecidas da cena cultural brasileira, como a psicanalista Suely Rolnik.

A artista havia proposto aos convidados a ideia de que a arquitetura modernista no Brasil se tornou mais um item de luxo do que habitação para as massas. O filme ecoa o passado e escancara o presente. Desde o preparo da festa até os diálogos entre pessoas esclarecidas no coquetel elegante, todos estão rodeados por empregados domésticos, na maioria negros, que servem as classes média e alta no Brasil até hoje, como se fosse a coisa mais normal do mundo. É preciso lembrar que Oscar Niemeyer era comunista, assim como outros arquitetos importantes da época, entre eles Vilanova Artigas. Fica um sabor amargo, um certo gosto de derrota no projeto de um Brasil moderno.

“Cidade dos loucos”
Em 2014, o trabalho apresentado por Tamar na 31ª Bienal de São Paulo foi um filme em 16 mm de 14 minutos intitulado A Família do Capitão Gervásio, feito em parceria com Kasper Hakhøj. O trabalho havia sido comissionado pela 55ª Bienal de Veneza e apresentado antes no Palazzo Enciclopedico, em 2013. Os artistas captaram cenas de tratamentos de saúde feitos no Centro Espírita Luz da Verdade, na pequena cidade de Palmelo, interior de Goiás, onde praticam passes chamados de “corrente magnética”, não aceitos pela medicina convencional. Na edição, exploram também a ideia das cidades astrais mapeadas no Brasil por uma médium de Palmelo e acrescentaram imagens de detalhes da arquitetura moderna brasileira, relacionando os ideais de uns e de outros.

O espiritismo e imagens da arquitetura moderna já haviam aparecido em seu trabalho, no audiovisual Um Homem Chamado Amor (2008), sobre o médium Chico Xavier, conhecido como o maior psicógrafo de todos os tempos, por ter escrito mais de 400 livros, segundo ele ditados por espíritos. Muito popular durante o regime militar, o qual apoiou, o médium teve um sobrinho, Sálvio Pena, preso político, que foi auxiliado pela mãe de Tamar, militante de esquerda, ao deixar a prisão.

Antes que se pergunte, Tamar Guimarães não é espírita, não tem religião e avisa que não é chegada em “trabalhos acusatórios”. No ano passado, ela fez mais um mergulho em parceria com Kasper Akhøj no espiritismo em Palmelo, também conhecida como “a cidade dos loucos”. O filme Uma História Menor da Matéria Tremblante (2017) foca em Lázaro e Divino, dois dos 500 médiuns da cidade, onde no passado havia um manicômio, do qual Lázaro foi paciente. Ele narra a repressão que passou por ouvir vozes desde criança e se aprofunda em suas práticas e seu significado. Além dos depoimentos colhidos com uma câmera íntima dos personagens, o filme é um ensaio visual que termina com o som de uma voz que não diz palavra, mas sim tremores, assobios, zumbidos e outros ruídos. O ritmo é ralentado.

Instituições artísticas problematizadas
Em outros trabalhos, Tamar Guimarães mergulha fundo no sistema da arte, pesquisando a história de algumas instituições e envolvendo nas filmagens funcionários e outras figuras conhecidas no meio, que acabam por colaborar nos roteiros. O fato é que as próprias instituições são problematizadas, o que torna esses trabalhos ainda mais interessantes e engraçados para o meio artístico.

Em 15 ½ (2013), feito na chamada Casa de Vidro, projetada por Lina Bo Bardi e onde a arquiteta residiu com o marido, Pietro Maria Bardi, entre os não atores estão os arquitetos Renato Anelli e Adelaide D’Esposito, os curadores Pablo León de la Barra, Luiza Proença e os artistas Rafael RG, Leandro Nerefuh e Kasper Akhøj. Ali se discutem a obra de Lina, os aspectos políticos, como sua obra tem sido mostrada nos últimos anos, a tiragem e o financiamento do catálogo que será feito, os insetos e as plantas do jardim ao redor da casa, o isolamento da arquiteta no Morumbi, o museu como centro de educação, a cozinha como espaço de conexão de áreas da Casa de Vidro, que é coberta por um jardim com plantas que nascem espontaneamente e não exigem cuidados especiais.

A câmera parece flagrar as pessoas em seu comportamento habitual e diálogos corriqueiros, nem sempre cabeçudos, mas sempre expressivos e reveladores. São lidos trechos de textos da revista Habitat, que foi coordenada pelo casal Bardi apenas até o número 15, embora tenha havido 84 edições. Daí o título do trabalho (15 ½), feito para a exposição The Insides Are on the Outside do curador Hans Ulrich Obrist naquele local.

Em La Incorrupta (2016), vídeo digital de 36 minutos comissionado pelo Programa Fisuras, do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Tamar também incorpora na trama muitos não atores, grande parte funcionários da instituição, que também acabaram colaborando no roteiro. A música é de Arto Lindsay.

A história é a produção da exposição de uma curadora convidada, interpretada pela diretora de teatro Judith Pujol. Na primeira cena do filme, o próprio diretor artístico do Reina Sofía, João Fernandes, tenta alertar a curadora de que a peça central de seu projeto, a Mão Incorrupta de Teresa de Jesus, relicário carmelita do século 16, talvez não esteja secularizada ainda, o que poderia provocar fortes reações contrárias à exposição. Ela controla, mas não chega a esconder sua impaciência.

“Viver é um processo de corrupção”, resume a artista, a propósito do roteiro do filme. As etapas e os percalços do processo de produção da mostra fictícia aparecem com grande realismo nesse filme, desnudando o modus operandi do museu.

A diretora Isa (interpretada pela atriz Isabél Zuaa) observa a equipe com que fará uma adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, comissionada por uma instituição de arte contemporânea; a cena faz parte do filme Ensaio (2018), de Tamar Guimarães, comissionado pela 33ª Bienal de São Paulo e filmado no pavilhão do Ibirapuera (Foto: Cortesia da Artista)

Memórias póstumas
O ato de desnudar a instituição cultural aparece também em alguma medida em Ensaio (2018), o filme criado para a 33a Bienal de São Paulo e filmado em seu pavilhão, que é, também, de autoria de Oscar Niemeyer. Só que, aqui, os atores devem ter importância maior, até porque a Fundação Bienal só permitiu que, no máximo, um funcionário por departamento colaborasse com o projeto.

O roteiro tem como trama o ensaio de uma adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. “Na trama, a adaptação é de Isa, uma jovem artista/diretora negra (interpretada por Isabél Zuaa) convidada por uma instituição de arte contemporânea para sugerir um projeto, ao que ela responde propondo uma adaptação de Memórias Póstumas, do qual só se encenaria o velório”, disse a artista no período em que passou editando seu filme para a 33a Bienal, residindo em um edifício da Faap, na Praça do Patriarca, próximo à prefeitura de São Paulo.

O curador atual da Bienal, Gabriel Pérez-Barreiro, os anteriores Ivo Mesquita, Pablo Lafuente, Luiza Proença e também a psicanalista Suely Rolnik aparecem no filme, entre outras figuras, interpretando não necessariamente a si mesmas.

Por que Machado de Assis? Para responder, a artista cita o historiador Sidney Chalhoub: oito anos antes da abolição da escravatura, Machado teve a perspicácia de dizer: “Haverá aqui a abolição da escravatura, mas a estrutura básica da sociedade não mudará”.

“Isso é inegável: a gente vive numa misoginia e numa pigmentocracia”, diz Tamar Guimarães. “Embora a mestiçagem esteja em todo lugar, a pigmentocracia também está refletida em todo lugar”, defende. “Inclusive dentro da Bienal.”

“No meu trabalho, não há um ataque à Fundação Bienal ou a indivíduos que trabalham nela – ela apenas reflete as estruturas sociais em que nos habituamos a viver no Brasil”, ressalta. “Mas não pode haver crítica sem autocrítica, por isso não há ‘incorruptos’ nem ‘anjos justiceiros’ no roteiro”, diz.

Sobre o custo do filme, ela ainda não tem a conta final na ponta da língua, mas sabe-se que o trabalho comissionado pelo Reina Sofía custou acima dos 40 mil euros. “Fazer cinema é caro. A Bienal nunca pagou tanto para um projeto meu”, diz a artista. “Mas a gente tem uma mentalidade exploratória. A gente quer coisa de graça das pessoas. A gente está acostumada, é terrível”, diz, contando a dificuldade em obter financiamento para realizar seu novo filme.

Tamar confidencia que já pôs do bolso R$ 45 mil para completar as despesas da produção, além de ter investido o próprio cachê e um adiantamento da galeria, que terá de pagar com trabalho.

“Qualquer história teria de ser contada de novo infinitas vezes, porque há sempre um ponto cego em uma narrativa, seja qual perspectiva tome. A consciência dessa provisoriedade muitas vezes parece não estar em foco em trabalhos críticos”, diz ela. “De qualquer forma, não me proponho a fazer trabalhos acusatórios, pois não acredito na imparcialidade do meu ponto de vista.”