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Themônia Pandora Rivera Raia, 2019 (Foto: Allyster Fagundes)
Postado em 24/06/2021 - 11:00
Themônias: montação e ativismo LGBTQIA+ na Amazônia
Monstruosidade, hibridismo, pajelança, lendas da floresta e aparelhagens de tecnobrega conformam o imaginário das Themônias

Uma expressão que surgiu no estado do Pará em 2013 e se espalha pelo Norte do Brasil, ser Themônia tornou-se um conceito, uma ideia, um posicionamento contra-hegemônico de corpas dissidentes que viram na arte da montação a possibilidade de quebrar com os padrões normativos de comportamento e gênero.

Sobre o significado da palavra montação, a artista Sarita Themônia explica na primeira edição da revista Themônia: “A montação virou MEGAZORD e as themônias vêm em POROROCA. Vivendo a montação como determinante na descoisificação dos corpos, e com isso o corpo como lugar de visibilidade de outros símbolos, temas e empoderamentos, a montação Themônia nos liberta a custo de muito desconforto, nos exigindo diferentes movimentos e posturas, colocando o nosso corpo em função da montação, dando suporte e evidência, provocando outra relação das pessoas com a nossa arte, com o corpo e, consequentemente, ressignificando a relação dos corpos montados com o lugar e as pessoas, potencializando, assim, um espaço favorável a comportamentos não Domesticados”.

A primeira e a segunda década dos anos 2000 foram marcadas por uma grande influência de programas de televisão e internet com foco na arte Drag Queen como entretenimento. Em diversos países, incluindo o Brasil, começaram a surgir festas e coletivos que passaram a expandir as possibilidades estéticas e performativas dessa arte. Com a importante presença de mulheres cis, artistas trans, não binárias, lésbicas, pretas e periféricas que começaram a se montar na capital paraense, o conceito de drag foi sendo ressignificado a ponto de não corresponder mais ao imaginário-padrão e tradicional comercializado pelas grandes mídias.

A monstruosidade, a estética tranimal, o hibridismo com a natureza foram se tornando mais evidentes nos figurinos e nas maquiagens. As expressões culturais e artísticas da Amazônia refletem fortemente suas ancestralidades pretas e indígenas, o imaginário da pajelança, os figurinos de carimbó, lendas dos rios e florestas, concursos de São João, músicas de dona Onete, Leona Vingativa, aparelhagens de tecnobrega. Um caldeirão de ritmos e imagens que são fortes referências para esse grupo que ano após ano vem construindo uma verdadeira revolução estética e política no Norte do Brasil.

Themônia Uhura Bqueer, 2014 (Foto: Cortesia da artista)

Noite suja
A festa Noite Suja, produzida por S1mone (Matheus Aguiar) e Tristan Soledade (Maruzo Costa) foi se tornando a cada edição uma referência, um refúgio para as artistas LGBTQIA+ paraenses que viram na montação a possibilidade de expressar suas verdadeiras identidades. Entre 2013 e 2014, houve momentos de grande fervo na cena cultural de Belém. Muitas artistas que moravam na região metropolitana da capital começaram a se montar na casa de amigas que moravam no Centro da cidade, criando uma importante rede de colaboração e fomentando o surgimento das houses ou “famílias”, termo bastante presente no documentário Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990), sobre a cena da ball culture idealizada por artistas trans e pretas do Brooklyn, em resposta ao racismo e preconceito dos bares gays do Centro de Manhattan.

A cada encontro, cada evento, mais jovens artistas foram se incorporando ao movimento, contando também com a presença de nomes ligados à arte transformista do início dos anos 2000, integrantes da festa da Chiquita, participantes de concursos de miss, que passaram a experimentar o oposto do que as gerações mais antigas tinham como ideal de beleza. A ideia de se montar com o que você têm em casa, transformar o precário em luxo, tudo vale! Flores Astrais, Sarita Themônia, Gigi Híbrida, Cìlios de Nazaré, Skyyssime, Monique Lafond, Pandora Rivera Raia, La Falleg Condessa, Xirley Tão, entre tantas outras artistas, são alguns dos nomes que fortalecem a história desse movimento cada vez mais reconhecido pela população paraense e em outras regiões da Amazônia, ganhando vida no trabalho de artistas como Uýra Sodoma, em Manaus.

Drag Condessa de DevonRiver, Beém do Pará, 2019 (Foto: Allyster Fagundes)

As corpas LGBTQIA+ são as corpas demonizadas pelo cristianismo. A imagem do Demônio representa o pecado, aquilo que não é aceito por não ser o padrão seguido pelos conceitos conservadores e tradicionais. Se assumir enquanto Themônia é uma forma de ativismo, uma tentativa de tornar vivas e visíveis as identidades que sempre foram destituídas de suas humanidades. “Ironizamos o termo Demônio, ressignificando a definição reducionista para a Themônia que se expande, multiplica e ao exaltar também as nossas condições invisibilizadas, geramos profundo estranhamento nas pessoas”, aponta Sarita Themônia na revista Themônia.

Tristan Soledade, em performance na abertura da exposição
Tupiniqueer, no Sesc Ver-o-Peso, Belém do Pará, 2019 (Foto: Paula Sampaio)

Visão binária invasora
Entre as diversas interpretações fantásticas criadas pelos invasores europeus sobre o suposto “novo mundo”, existia a expectativa de um paraíso, um “Éden” perdido, e também da presença de monstros e figuras bestiais que se encontrariam nos mares durante as travessias das caravelas. Encontramos essa visão binária de paraísos e infernos na obra O Jardim das Delícias (1490-1510), de Hieronymus Bosch, e também em pinturas e tapeçarias da Renascença. A demonização foi uma metodologia usada pela Igreja como justificativa para a violência colonial.

Não é de hoje que corpas ameríndias são demonizadas. No século 20, o escritor Alberto Rangel descreveu a Amazônia como um Inferno Verde (1908), reafirmando o conceito cristão de um ambiente de condenação e sofrimento. As Themônias são um levante anticolonial, uma resposta crítica ao olhar civilizatório. Existir quanto monstruosidade, quanto seres não brancos e não europeus, há séculos vem sendo sinônimo de resistência.

O coletivo vem experimentando formas de comunicação diferentes da língua do colonizador. Surge um verdadeiro glossário de palavras que dialogam com referências sonoras próprias da Região Amazônica, com a cultura de massa e também com o dicionário social LGBTQIA+ do pajubá. O movimento é vivo, pulsante de ações e ideias, se recria e se reinventa a cada semana, a cada mês. Os “hierogritos” e “megazord” são dois importantes exemplos deste novo vocabulário.

O que para alguns ouvidos desinformados pode parecer gritos, ou berros que remetem a uma grande revoada de furiosas araras, é um grande sinal sonoro de anunciação e de aproximação do coletivo das Themônias. Uma forma de assustar os cis/hetero/conservadores, espantar os agouros, extravasar momentos de gozo e felicidade, ou até mesmo pedir socorro. Esses são os hierogritos.

“Megazord é um termo criado pelas Themônias para quando precisarmos nos unir para nos proteger em alguma situação ou até mesmo para nós deslocar, quando saímos juntas formamos um megazord!”, contam as Themônias em seu Instagram. Na cultura sentai, o megazord é uma arma poderosa de ataque que se forma da união de diferentes super-heróis.

Themônia Gigi Híbrida, 2021 (Foto: Hugo Correia)

Transborde
Os dados da união nacional LGBT apontam que a estimativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é 35 anos. Diz também que a cada três minutos uma pessoa LGBTQIA+ sofre algum tipo de violência. Em um país com informações tão alarmantes e com o atual governo que prega a intolerância e a morte, a organização desse movimento torna-se de grande importância para o reconhecimento da Amazônia como referência no combate a LGBTQIA-fobia.

As Themônias transbordaram o estado do Pará e estão hoje por todo o Brasil. Expandindo suas atuações para além das festas, organizando festivais, manifestos, revistas, realizando debates sobre empregabilidade, segurança, saúde, acesso à educação e políticas públicas para a comunidade LGBTQIA+. Themonizar a arte tornou-se uma ação de descolonização, de fortalecimento dos conceitos decoloniais e ativismo de corpas dissidentes na América Latina.

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