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Retrato de Andrea Giunta (Foto: Rob Verf)
Postado em 28/01/2020 - 10:00
Uma exposição é um tornado
Andrea Giunta, curadora da 12ª Bienal do Mercosul, articula a exposição sob o conceito de diferença e multiplicidade do(s) feminino(s)
Daniela Labra e Paula Alzugaray

A escritora, professora e pesquisadora argentina Andrea Giunta esteve em São Paulo em 2018 para a montagem da exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985, fruto de longa pesquisa realizada em parceria com a historiadora da arte Cecilia Fajardo-Hill. No Brasil, constatou um mundo da arte branco, patriarcal e classista, que repete uma estrutura em vigor em toda a América Latina. De volta ao país como curadora-geral da 12ª Bienal do Mercosul, que acontece de 16/4 a 5/6/2020, em Porto Alegre, Giunta pesquisa “uma transformação radical no contemporâneo”, a partir da atuação de outras identidades no campo da arte. Com o título Feminino(s). Visualidades, Ações e Afetos, a mostra interroga o lugar social do feminino, a partir de propostas de artistas mulheres e de sensibilidades não binárias, fluidas e não normativas. Com sua equipe curatorial formada por Dorota Biczel, Fabiana Lipes e Igor Simões, Giunta busca construir espaços de expressões e escutas, que problematizem os sistemas excludentes da arte e da sociedade. Em entrevista concedida à seLecT por Skype, desde Buenos Aires, ela fala sobre o poder convulsivo da arte e os desafios de fazer uma Bienal quando as sociedades estão em crise e as políticas inclusivas estão em perigo.

Paula Alzugaray: Em entrevista à seLecT, durante a montagem de Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, 1960-1985, na Pinacoteca de São Paulo, você me disse que, se a exposição abordasse o contexto contemporâneo, seria difícil incluir apenas mulheres. Nesse sentido, a mostra Feminino(s) abordará a complexidade atual dos problemas feministas, como sensibilidades não binárias e não normativas?
Andrea Giunta: Sim, de fato, quando fui convidada a apresentar um projeto, estava finalizando Mulheres Radicais e vi uma possibilidade de continuar pensando sobre esse problema, mas não só no terreno da discussão sobre o binário. Talvez o capítulo mais interessante que se abriu para mim ao montar Mulheres Radicais no contexto brasileiro – e ver como o mundo da arte no Brasil é um mundo branco, patriarcal e classista, como também é na América Latina, mas no Brasil é muito mais evidente – foi investigar o que realmente implicava uma transformação radical no contemporâneo. Quando trabalhamos Mulheres Radicais, praticamente não conseguimos localizar artistas afro-latino-americanas que tivessem tido inserção no mundo das artes. Estávamos trabalhando com esse parâmetro: artistas reconhecidas pela mídia por participarem de exposições, serem premiadas… mas isso não acontecia com as artistas afro-latino-americanas, pois elas estavam ausentes do mundo da arte. Isso foi particularmente impressionante no contexto brasileiro e fiquei muito preocupada, porque era muito difícil fazer uma exposição de mulheres brancas no contexto brasileiro. Penso que poderíamos ter incluído Maria Auxiliadora. Mas o mundo da arte não a havia incluído. Esse panorama mudou radicalmente no Brasil, porque as universidades, por meio de cotas, tiveram de levar adiante políticas inclusivas, que deram participação em outras identidades. Hoje há muitas artistas incríveis afro-brasileiras e afro-latino-americanas, e isso foi um ponto realmente deslumbrante para mim, pois acedi a poéticas que eu não esperava. Então, sim, a exposição está considerando outras identidades, mesmo em termos de sexualidade. Mas não vamos lidar com porcentagens, porque também discutimos o quanto elas estigmatizam. Incluímos identidades fluidas, artistas trans, mas não vamos dizer quem é quem. É um trabalho da crítica investigar isso. Mas, para mim, foi uma transformação completa dos meus parâmetros, e essas artistas estarão muito bem representadas na Bienal.

Jovem da etnia Catrimani, em Roraima, fotografado por Claudia Andujar com filme infravermelho, em 1976

PA: No statement curatorial, você afirma que, dentro do amplo espectro da bienal Feminino(s), deseja “ouvir em detalhes e abordar seriamente todos os estereótipos marginalizados”. Como será feita essa escuta? Como a pesquisa está sendo feita?
É uma investigação de radar aberto. A diferença entre Mulheres Radicais e uma bienal é que, em uma bienal, não é preciso cobrir tudo; não é como uma exposição histórica, onde é preciso fazer uma investigação completa. As bienais enfrentam desafios inesperados, há muitos trabalhos que serão produzidos, por isso é uma metodologia completamente diferente. Não sei, na verdade é a primeira vez que curo uma bienal, sempre faço exposições que criam um compromisso extremamente alto com a história, explicando claramente o que está na exposição e quais são os parâmetros. A bienal é mais livre e desafiadora. Acredito que gerará muita atenção em relação ao poder da arte para tratar questões estético-políticos em contextos difíceis, como o que o Brasil está passando. Nesse sentido, meu conhecimento de toda a arte desenvolvida em ditaduras e contextos repressivos também é uma formação para entender que existem trabalhos extraordinariamente políticos, mas não necessariamente óbvios.

Daniela Labra: Como falar sobre questões de raça, etnia e empatia, sobretudo no contexto de uma bienal no Sul do Brasil, que é uma região que apoia fortemente a narrativa que agora está no poder. Como conversar com um público que geralmente rejeita essas ideias?
Bem, a sociedade brasileira é como todas as sociedades latino-americanas. Quantas vezes ouvimos em nossos países que na Argentina não há racismo, que no Brasil não há racismo, que não há racismo em lugar algum? E, no entanto, existem muitas pessoas que não estão em posições de poder e, coincidentemente, quem está são pessoas brancas, que pertencem a certos setores sociais. Parece-me que essas produções artísticas não estão sendo incluídas, não porque o sujeito criativo seja um afrodescendente, mas porque estão apresentando poéticas extraordinariamente sofisticadas, que não tiveram espaço no mundo da arte. Esta é a decisão política como curadora: dizer que vozes eu gostaria de proporcionar ao público. Porque, assim como um artista foi apagado, o público também foi prejudicado por um sistema de arte excludente. Existe um tipo de censura sistêmica no mundo da arte que exclui muitas vozes representadas na sociedade e que o público não pode ver. Acho que o problema é duplo. Por um lado, vozes silenciadas que não podem se expressar e, por outro, vozes silenciadas que não podem ser ouvidas. Assim, uma exposição que propõe como agenda política e estética essa necessidade de levar o público sem discriminação a produções com alta densidade, complexidade estética e sofisticação da linguagem também dá lugar a um direito do público e da cidadania, que é conhecer mais. O mundo da arte é muito exclusivista, acaba trabalhando em torno de vários artistas repetidos, repetidos e repetidos. Mas é um campo extraordinário que deve ser trabalhado de maneira mais abrangente, com o objetivo de criar contextos de conhecimento. Por outro lado, você menciona empatia e isso me parece importante porque em muitos casos os artistas falam em nome de outros. Por exemplo, Claudia Andujar, cujo trabalho fotográfico é político e de militância em relação aos Yanomâmi extraordinário. Ela não é uma pessoa que se aproxima com um olhar exótico, mas com um olhar empático… mas a gente também se pergunta: o que dizem os Yanomâmi? Porque nós os vemos representados. Nesse sentido, tratamos, na Bienal, de tornar a primeira pessoa vibrante. O sujeito empoderado.

DL: Como você situa o legado das vanguardas modernas latino-americanas, pensadas como movimentos emancipadores, como projeto político? Você consegue perceber algo desse legado ainda hoje ou as discussões mudaram bastante?
O horizonte utópico das vanguardas é uma dívida emancipatória pendente. A emancipação nunca está completa, seus horizontes mudam. Portanto, o impulso da vanguarda como capacidade de imaginar um futuro diferente continua presente. Também é certo que muitos artistas trabalham com citações da vanguarda histórica, em movimentos neovanguardistas. Não podemos pensar em minimalismo sem Malevich. Não podemos pensar em Rauschenberg, ou em artistas dos anos 1960, sem o futurismo, ou sem a conexão de Duchamp com o dadaísmo. Isso é claro. Agora, talvez neste momento eu também sinta mais fortemente tudo o que esse mundo deixou de fora. Quando se pensa no cânone da arte e no discurso da vanguarda histórica, tanto quanto na vanguarda latino-americana, muitas exposições recentes revelaram até que ponto esses horizontes emancipadores estavam trabalhando dentro de uma elite e dentro de um mundo branco. Eu acho que a exposição de Tarsila do Amaral no MoMA foi tão controversa, por causa da maneira de conceber a montagem, a curadoria. Questiono também por que aprendemos a história da arte tão centrada em basicamente cinco cidades do mundo. No meu trabalho, estou revertendo muitos desses regulamentos canônicos. Por que temos de pensar na regulamentação centralizada entre o cubismo e a arte africana e não podemos pensar no cubismo como uma periferia da arte africana? Temos uma maneira muito estabelecida de pensar o relato canônico da modernidade. Estou mais interessada neste momento em pensar de outra maneira.

PA: E como você vê no contexto contemporâneo o indigenismo, uma vanguarda histórica propriamente latino-americana? Seu paternalismo está em revisão?
Sim, o paternalismo é certo, as elites falavam “em nome de”. O programa muralista da revolução mexicana reduziu o indígena a uma iconografia, enquanto o sistema pós-revolucionário, desde as articulações do Estado, mantinha o indígena submetido. Além disso, falava-se de um indígena idealizado, não do indígena real. Parece-me que na arte contemporânea essa questão ainda é muito forte. O mundo da arte contemporânea também coleciona exotismos e “fala em nome de”. Temos de nos perguntar quais são os deslocamentos e as operações de empoderamento, que têm sido muito recentes. A partir do momento em que a comunidade afro-latino-americana tem inserção na universidade, também quer participar, expor e ser reproduzida em catálogos, exibições individuais e entrar no mundo do poder da arte. Este não é um processo concluído, estamos no meio desse processo. Na medida em que sociedades como a brasileira estão em crise, essas utopias e políticas inclusivas também são um processo em plena combustão, também em perigo.

PA: Que críticas você faz à curadoria de Tarsila no MoMA?
A curadoria de Tarsila no MoMA era hiperproblemática, porque não se pode, neste momento em que trabalhamos a partir de perspectivas pós-coloniais, em que nos perguntamos quais são as matrizes excludentes ou racistas em nossas sociedades, exibir em um museu como o MoMA A Negra, de Tarsila do Amaral, com uma naturalidade sem contextualização, em que você não percebe o que isso significa. A própria Tarsila não tinha muita consciência, nem podemos pedir a uma pessoa que pertence a um setor sociocultural para desenvolver as diferentes matrizes de pensamento que temos hoje. Sobre isso havia muitos artigos no The New York Times, no Hyperallergic, no Art Newspaper, com a participação de artistas afro-brasileiros que perguntavam, bem, onde estão as vozes que falam de toda essa problemática? Por que os problemas da escravidão ou da afro-brasilidade entram em uma exposição sempre pelos mesmos mecanismos? Até que ponto a história da arte está realmente ecoando um debate político, filosófico e, acima de tudo, uma transformação na qual os sujeitos que estavam em uma situação cultural exclusiva estão tendo novas ferramentas e se capacitando? Não posso falar em nome do outro, porque é exatamente o que estou questionando, mas posso questionar o que estou vendo e o que não estou vendo. Uma exposição tem um poder extraordinário, porque coloca diante de nossos olhos uma relação sem precedentes entre as obras. Em uma sala de exposição, acontece muito mais do que simplesmente trabalhos pendurados lado a lado. A narrativa das obras cria uma espécie de tornado dentro de um espaço expositivo.

DL: Nos últimos cinco anos, tivemos duas presidentes no Brasil e no Chile, Dilma Rousseff e Michelle Bachelet, eleitas em 2014 por segunda vez, retiradas pela mão forte do neoliberalismo com forças do poder político. Em resposta, penso que nos últimos cinco anos também aumentaram os coletivos, curadores e artistas que partiram para práticas estético-ativistas.
O Chile é um país importante representado na Bienal, precisamente porque nessa conjuntura e ante tantos anos de ditadura, a arte chilena conseguiu desenvolver uma enorme consciência crítica e estética em torno dos limites da palavra e da imagem: como dizer quando você não pode dizer… e estamos em um contexto em que a liberdade das imagens e das palavras é restrita. Estamos sob uma vigilância que escapa ao mundo da arte ou de agentes políticos específicos, estamos diante de uma sociedade que está disposta a denunciar, filmar… uma quantidade de coisas novas e que a arte não tem todas as ferramentas para levar adiante uma política de dizer “apesar de” …, como Didi-Huberman diz, “imagens, apesar de tudo”. Quando os conceitos parecem completamente opostos e contraproducentes, no entanto, eles continuam sendo articulados. Acho que a arte chilena tem uma tradição complexa de trabalhar sobre dobras, deslizes. Estamos diante de um desafio. Temos de estar muito conscientes de que há uma vigilância extrema. E a questão é como continuar criando sinais que suscitam afeto, pensamento e crítica, mesmo quando há dificuldade em dizer, colocar imagens, porque existem métodos de controle inéditos. É um desafio fazer uma Bienal em um contexto como o contemporâneo.

DL: A rede Conceptualismos del Sur lançou uma chamada para projetos gráficos de apoio à causa política do Chile agora. Isso chama para um diálogo com uma produção ativista que se fortalece há cinco anos no Chile e no Brasil…
Bem, acho que a Conceptualismos del Sur está muito associada a um museu que depende da monarquia e do Estado espanhóis, não é? Não podemos esquecer isso. Existem muitas resistências locais que trabalham com pôsteres nas ruas, com ativismo feminista, criação de objetos, bandeiras, conferências, ou seja, de forma muito mais rica que uma iniciativa centralizada que constrói uma plataforma de centralidade. Há uma textura incessante.

DL: Sim, estamos vivendo momentos de convulsão, e a arte responde.
A arte não apenas responde, como também gera a convulsão. Pude observar tantas vezes que a arte produz e funda debates inéditos… uma exposição é um tornado. É uma convulsão de ideias, é uma linguagem que tem especificidade e pode se comunicar e atravessar tensões de maneira única.