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Postado em 30/10/2014 - 6:34
Uma exposição na contramão
Giselle Beiguelman

Em tempos de “shoppincenterização” da história, visitar a exposição Memórias Inapagáveis é um alívio

Memoriasesc

Legenda: Still do vídeo Barrueco (2004) de Ayrson Heráclito e Danilo Barata, em exposição na mostra do acervo do Videobrasil, Memórias Inapagáveis (foto: Reprodução)

Memórias Inapagáveis é uma exposição dura em todos os sentidos. Desafia os visitantes a pensar e impõe uma certa carga de sofrimento e dor. É impossível ignorar a violência das imagens e a crueldade que atravessa inúmeras passagens da história remota e recente que apresenta. É dura também do ponto de vista da montagem. Sem apelos cenográficos, a mostra em cartaz no Sesc-Pompeia apresenta um conjunto de obras de forte conteúdo político em vídeos, quase todos em formato monocanal.

Não há obras interativas. Nada convida à participação do público. Não existem atividades colaborativas, compartilháveis ou replicáveis. Apenas longos seminários e debates. Sem ações processuais, relacionais ou virais, exige tempo e introspecção do visitante que ali deve circular, sentar e assistir às 11 obras expostas, completadas por registros e documentários.

Com curadoria do espanhol Agustín Pérez Rubio, atual diretor do Malba de Buenos Aires, tem por base o acervo do Videobrasil e como perspectiva de análise o repertório dos estudos pós-coloniais. Dito de outra forma, a exposição cruza a base geopolítica do festival dirigido por Solange Farkas com um olhar que busca formas de conhecimento alternativas às tradições europeias. Importante lembrar que o recorte geopolítico, no caso, faz referência a um mapa característico do horizonte de atuação do Videobrasil, que opera com uma noção de Sul expandido. Ela engloba a América Latina, a África, a Austrália, o Oriente Médio, a China e o Sudeste Asiático.

A diversidade dos registros não permite criar identidades entre as distintas realidades. Nada pode aproximar, por exemplo, a violência da escravidão no Brasil e a dor dos corpos em trânsito nos navios negreiros da brutalidade das imagens de Abu Ghraib. Ambas são memórias de temporalidades muito diferentes, discutidas, além do mais, com linguagens videográficas particulares por Ayrson Heráclito e Danillo Barata, em Barrueco (2004), e Coco Fusco, em Bare Life Study #1 (2005).

De ponta a ponta da exposição, as imagens não nos dão trégua nem sossego. Sem se confundir com a comemoração consumista fácil das modinhas retrô e das pseudorruínas, elas não se esgotam em si mesmas. Apontam para uma dimensão do passado que só adquire sentido porque ainda reverbera de alguma forma no nosso presente. Na sua implacabilidade, abrem um horizonte de futuro. O que não deixa de ser um alívio.

*Review publicado originalmente na edição #20