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Postado em 04/05/2015 - 8:15
Urbanismo tático
Luciana Pareja Norbiato

Coletivos artísticos e arquitetônicos plantam projetos de reconfiguração urbana à margem do poder público

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Legenda: Com iniciativas como o Parque de Balanços no Anhangabaú, o Basurama leva aos moradores das cidades uma nova noção de vida em grupo (foto: Giselle Beiguelman)

Filho da Revolução Industrial, o urbanismo surgiu como resposta ao aumento da população nas cidades e à aspiração de projetar a cidade como um macro-organismo controlável. Nessa perspectiva, foi compreendido tradicionalmente como uma disciplina pela qual arquitetos uniam-se ao poder público para traçar planos de crescimento ordenado para os aglomerados humanos.

As dinâmicas sociais e os próprios ritmos do capital nunca seguiram essas diretrizes à risca. O processo de globalização e a rapidez da circulação de informação depois da internet escancaram de vez a ineficiência do ideal estratégico. Especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde a infraestrutura de base é tão problemática. Na falta de saneamento, iluminação e pavimentação, como exigir do espaço público vocação social e estética?

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Legenda: Painel instalado sob o Minhocão (SP) pelo grupo carioca Muda, que usa a iconografia modernista para recuperar áreas degradadas (foto: Cortesia Coletivo Muda)

Diante da iminência do caos urbano e ambiental neste início do século 21, nada mais natural que cidadãos ajam por conta própria, na tentativa de sanar demandas urgentes. Mais que isso, de implementar iniciativas que resgatem o convívio, a vida em comunidade e o respeito às diferenças. É a era do urbanismo tático.

O movimento é internacional e vem ganhando seguidores, desde os anos 1990. O termo “urbanismo tático” popularizou- se nos EUA, em 2010, quando foi usado em um debate sobre a pedestrização da Times Square (NY). Em sua esteira, a empresa de design e planejamento urbano The Street Plans Collaborative, de Miami e NY, lançou em 2011 seu primeiro manual virtual, Tactical Urbanism: Short-Term Action/Long-Term Change (Ação de Curta Duração/ Mudança de Longo Prazo), uma compilação de projetos táticos. Veio o Volume 2, com casos novos; um terceiro manual voltado para experiências na América Latina; e um quarto sobre Austrália e Nova Zelândia.

Acima das particularidades desse campo em cada país, o urbanista Mike Lydon, sócio da Street Plans, afirma à seLecT que “a questão crucial do urbanismo tático é tratar os problemas nas cidades com ações rápidas e facilmente executáveis, que mostram a possibilidade de mudança de longo prazo”. Essa é a ideia fundamental no coração dos projetos de urbanismo tático ao redor de todo o mundo. Como numa profecia, o pensador francês Henri Lefebvre (1901-1991) escreveu em seu La Production de L’Espace (Éditions Anthropos, 1981), que “a ‘verdade do espaço’ vincula o espaço, por um lado, à prática social e, por outro, aos conceitos elaborados e encadeados teoricamente pela filosofia, ainda que a superando como tal, precisamente pela conexão com a prática”. É dessa mistura de saberes formais e cotidianos que o urbanismo tático se alimenta.

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Legenda: De colete refletivo, Mike Lydon, sócio da Street Plans Collaborative, pinta sinalização em rua dos EUA (foto: Cortesia Mike Lydon)

Gentileza urbana

Com a precariedade urbanística e todo tipo de carência social, o Brasil é um sítio privilegiado para ações diretas. Um exemplo desse tipo de prática hoje no Rio de Janeiro são as intervenções do Coletivo Muda. Em atividade desde 2011, o grupo formado pelos designers Bruna Vieira e João Tolentino e os arquitetos Diego Uribbe, Duke Capellão e Rodrigo Kalache vale-se de sua formação e da pesquisa com módulos para criar murais que carregam diversas memórias. “Desde a herança portuguesa até os painéis de azulejos dos grandes muralistas brasileiros”, segundo os integrantes.

Pela imagética conectada ao modernismo, o Muda criou um canal direto entre paisagem e moradores. “Nossos painéis se espalham pela cidade, ativando a percepção dos transeuntes e fazendo com que a paisagem urbana se torne mais presente no dia a dia da população”, dizem. De fato, locais degradados que vão desde o Largo da Carioca ao metrô de Nova York ganham beleza e visibilidade.

Velho de guerra na cena tática, o Bijari está atualmente em cartaz na Choque Cultural, em SP, com um projeto que a revista seLecT publicou em primeira mão em sua edição 17: as Praças Impossíveis. São simpáticas bicicletas munidas de guarda-sol, banco e jardim portáteis que improvisam espaços públicos coletivos onde quer que exista um canto inútil.

Outros desdobramentos são os happenings do carioca Opavivará, que articulam desde espaços temporários de convívio e até chuveiros públicos; ou a pesquisa Bicicletas Ambiente: Economias de Quintal (2013), da dupla de artistas mineiras Ines Linke e Louise Ganz, que mapeou hortas comunitárias, criadores de animais, quintais produtivos, nascentes, fontes de água, de energias, sistemas construtivos alternativos e outras microeconomias verdes da Grande Belo Horizonte. Pela fartura, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) realiza desde 1993 o Prêmio Gentileza Urbana, para “pequenas atitudes dos cidadãos que colaboram para deixar a vida nas cidades cada dia melhor”.

“Os coletivos se multiplicaram muito rapidamente”, diz Marta Bogea, arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “É importante pensar na potência desse movimento. Será que o nosso único motivo para estarmos juntos são os momentos de confraternização? Até que ponto o coletivo é só festa?”, problematiza.

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Legenda: Jornal Fala Calafate, produzido pelo coletivo Micrópolis em colaboração com a comunidade do bairro de BH (foto: Cortesia Micrópolis)

Soluções fictícias, práticas cotidianas

Para que ações táticas não sejam confundidas com baladas e festejos, a solução é realizar iniciativas de cunho pedagógico, que capacitem os públicos locais para a continuidade das ações. Como fazem o coletivo Basurama, que se divide entre Madri e São Paulo, e o mineiro Micrópolis.

Na ativa desde 2001, o Basurama chegou a SP em 2007. Como o nome indica (basura é lixo em espanhol), o grupo trabalha com materiais descartados, articulando urbanismo e ecologia. Eles lançaram em março último o Guia Fantástico de São Paulo, cujas ilustrações de Ángela Léon mostram soluções fictícias e poéticas para a megalópole, como uma piscina gigante no Minhocão ou balanços suspensos em viadutos, que chegaram a virar realidade na Virada Cultural. Mas, além da fantasia, iniciativas como jardins verticais feitos com garrafas PET e trepa-trepas de carretéis de fiação pública são ensinados à população. “A questão do empoderamento comunitário é fundamental dentro da nossa atuação”, diz o artista espanhol Miguel Rodríguez Cruz, um dos integrantes do Basurama. #ficaadica das instalações no site do grupo.

O coletivo Micrópolis, criado em 2010 por arquitetos com formações complementares em ciências sociais, começou no ano passado a investir em projetos de conscientização no bairro Calafate (BH). Foi lá que os eventos antes efêmeros do grupo passaram a ser norteados por um projeto pedagógico, gerando um jornal feito em parceria com moradores, o Fala Calafate. “Começamos a reunir práticas cotidianas e histórias das pessoas não com o intuito de solucionar problemas, mas como forma de criar redes e mostrar como as práticas dos próprios moradores têm uma potência muito grande no espaço do bairro”, conta o integrante Felipe Carnevalli. O jornal virou um sucesso e a comunidade abraçou a causa. “Até o padre da igreja local nos chamou para sugerir uma reportagem sobre a crise da água e as fontes escondidas do bairro.” Nesse rastro sobressai a busca por uma nova forma de perceber o mundo. O fim das certezas quanto ao futuro abre as portas para a arte propor novos modos de existência.

*Reportagem publicada originalmente na edição #23