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Postado em 18/03/2013 - 2:39
Utopia possível
Em 1971, estudantes de arquitetura colocaram de pé a Instant City, uma cidade de plástico, efêmera, em Ibiza, na Espanha. O lugar funcionou como metáfora de um novo modelo social, baseado na cooperação entre as pessoas
Daniela Labra, de Barcelona

select 10“O mundo está se preparando para uma metamorfose dos deuses. Abandonam-se os valores e arquétipos da cultura vigente e adotam-se novas formas de vida nascidas de outra visão do mundo.” Assim começava o manifesto da Instant City, uma das proposições do VII Congresso do International Council of Societies of Industrial Design (Icsid), realizado em outubro de 1971 na outrora idílica ilha de Ibiza – ou Evissa. O evento foi organizado pela Agrupació de Disseny Industrial del Foment de les Arts Decoratives (ADI/FAD), radicada em Barcelona, e teve um formato revolucionário, cujo objetivo era transformar um encontro profissional convencional em um acontecimento libertário, sem precedentes na Espanha – que amargava os últimos anos da obscura ditadura do general Francisco Franco.

Em vídeo preparado pelo Macba para a exposição, os envolvidos falam sobre o Congresso de 1971 (em catalão).

O congresso, que durou três dias, foi inspirado pela contracultura dos anos 1960 e fazia referência ao espírito livre da época. Seus organizadores, a maioria estudantes, pretendiam desconstruir os congressos de então, formais, tediosos, com crachás, tradutores e cafeterias impessoais. A meta era potencializar o intercâmbio de ideias entre profissionais e alunos de design industrial – uma nascente disciplina – e assim obter um resultado vivo e transformador. Apesar de inicialmente criticado por membros do conselho internacional, o modelo experimental do Icsid Evissa foi levado a cabo, tornou-se referência no meio e incentivou novas propostas, impulsionando Barcelona como uma das capitais mundiais da arquitetura e do design.

Para rememorar tal evento e sua importância, o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba) organizou a exposição La Utopía Es Posible, que esteve em cartaz até 20 de janeiro, sob curadoria de Daniel Giralt-Miracle e Teresa Grandas. De museografia simples e despojada, a mostra, repleta de displays cheios de documentação, tinha projeções e fotografias dispostas diretamente sobre as paredes. No chão, televisores em racks brancos passavam documentários e entrevistas, enquanto pufes em tons laranja, amarelo e vermelho convidavam o espectador a relaxar ao som de uma trilha sonora que incluía All Along the Watch Tower, de Bob Dylan, interpretada por Jimi Hendrix.

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A instalação Instant City, projeto criado por José Miguel de Prada Poole, procurava facilitar o alojamento dos jovens que fossem ao congresso, quando Ibiza ainda não era explorada pelo turismo de massa (Foto: Xavier Miserachs/Cortesia MACBA)

Embora Ibiza seja hoje um símbolo do hedonismo capitalista, em 1971 a ilha – cuja ocupação remonta à Idade do Bronze (2000-1600 a.C.) – apenas começava a ser explorada pelo turismo de massa. Mas, na década de 1930, alguns intelectuais, como Walter Benjamin, se refugiaram ali e confrontaram, pela primeira vez, a vanguarda moderna e transgressora com a tradição pacata do vilarejo. Os atributos históricos, culturais e naturais de Ibiza determinaram sua escolha como sede do VII Icsid, que teve lugar na Cala de Sant Miquel, uma baía da costa noroeste da ilha, longe do centro. Para os organizadores, a praia bucólica seria um refúgio para a produção intelectual e criativa, e isso contrastava radicalmente com Montreal ou Londres, cidades-sede anteriores, que proporcionavam mais a dispersão do que a integração.

No que tange à programação do congresso, palestras e debates foram organizados em salas de reuniões nos dois hotéis existentes na Cala, mas também podiam acontecer ao ar livre, espontaneamente. Nesses encontros, discutiam-se design, urbanismo, arte, novas tecnologias e pensamento contemporâneo. Em paralelo às atividades, diversas proposições vinculavam o design a outras linguagens. Uma das mais significativas foi Instant City, projeto criado por José Miguel de Prada Poole para facilitar o alojamento dos jovens que fossem ao congresso. Professor da Universidade Politécnica de Madri e especialista em arquiteturas infláveis, Prada Poole idealizou uma cidade de plástico, efêmera, que não deixasse rastro, baseada em um sistema de construção bastante simples e barato: cilindros e esferas que se interconectavam e podiam crescer segundo as necessidades. Como não havia verbas e a solução precisava ser econômica, a estrutura sustentada por ar – a mesma matéria dos sonhos – era uma saída perfeita.

Instant City foi feita com plástico PVC doado por uma multinacional e erguida pelo esforço coletivo de voluntários usando como ferramentas grampeadores comuns e tesouras. O trabalho durou menos de uma semana. Para convocar os “operários”, os então alunos de arquitetura Carlos Ferrater e Fernando Bendito, hoje destacados arquitetos, redigiram, com o escritor Luis Racionero, o Manifiesto de la Instant City, que foi difundido pelo mundo. O manifesto chamava estudantes a participar da construção dessa cidade temporária, em que a cooperação era o motor para integrar as pessoas.

O sistema de sinalização de Instant City era precário e, por isso mesmo, criativo. Assim que ficava pronta uma parte da estrutura, indicações eram escritas com pilot atômico sobre a lona plástica. Para entrar no edifício mole, atravessava-se uma fenda, o que alguns participantes relataram como sendo uma experiência de entrar no “útero/ vida”. Tal descrição condiz com o espírito poético da época, quando artistas como Hélio Oiticica ou Maurice Agis propunham vivências que ampliavam a percepção sensível. Do mesmo modo, croquis de arquiteturas utópicas surgiam em projetos artísticos de coletivos como Archigram, Haus-Rucker-Co. e UFO.

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Estima-se que cerca de 2,5 mil pessoas foram ao congresso, e que a maioria passou pela Instant City, para dormir ou participar de festas psicodélicas (Foto: Arxiu Jordi Gómez/Cortesia Macba)

Estima-se que cerca de 2,5 mil pessoas foram ao congresso, e que a maioria passou pela Instant City, para dormir ou participar de festas psicodélicas. Apesar do sucesso, participantes recordam que as escassas instalações sanitárias promoveram certo caos e que, ao fim do encontro, centenas de metros de plástico usado foram doados, deixando Ibiza repleta de restos coloridos de um material que ainda não era temido ecologicamente nem banalizado como agora. Entre as proposições artísticas que pontuaram o congresso do Icsid estavam duas esculturas “moles”. A primeira era a Vacuflex-3, de Antoni Muntadas e Gonzalo Mezza, feita com um largo conduíte industrial de plástico flexível, com mais de 150 metros de comprimento, para ser manipulado pelo público, no mar e na areia. Além dessa, outra obra de grande impacto visual foi o inflável modular de Josep Ponsatí, com cerca de 40 metros, que flutuava imponente sobre o mar ao ser ancorado no meio da baía. Houve ainda o jantar de inauguração do encontro, organizado por Antoni Miralda, uma cerimônia-happening, onde se serviu uma paella multicor aos presentes, que vestiam máscaras e indumentárias com as mesmas cores da comida.

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Entre as proposições artísticas que pontuaram o congresso do Icsid estava a Vacuflex-3, de Antoni Muntadas e Gonzalo Mezza, uma escultura “mole” feita para ser manipulada. (Foto: Joan Antoni Blanc/Cortesia Macba)

O Icsid de Ibiza foi uma experiência de socialização, trabalho coletivo e reflexão intelectual. Para os organizadores, o encontro criticava o puritanismo provinciano da ditadura e anunciava o começo de um novo ciclo da cultura. Embora seu legado material não vá além de documentos e registros, o Icsid Evissa semeou relações. Mais de 40 anos depois, vemos que diversas ideias contidas ali se mantiveram na pauta contemporânea: sustentabilidade, participação, solidariedade, novas relações entre indústria e sociedade, a utopia da natureza livre e a arte como experiência educativa libertadora.

No momento em que a Europa é assombrada por uma crise econômica sem perspectivas de acabar, e a Espanha vê, nesse contexto, o acirramento de discursos separatistas, a memória desse evento libertário é um alento. Ela nos recorda que o “fim das utopias” é em si um delírio utópico, pois, enquanto houver vida humana, haverá sonho e perspectivas de transformações sociais, estéticas e éticas, ainda que pareçam longínquas.

*Daniela Labra é crítica de arte, doutoranda em História e Crítica pelo PPGAV/EBA/UFRJ. Membro do conselho curatorial do Galpão Bela Maré, RJ, e integrante do grupo de investigação Global Art Archive, ligado à Universitat de Barcelona. É professora da EAV Parque Lage.

*Publicado originalmente na #select10.