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Postado em 15/01/2015 - 6:01
Ver o invisível
Marcelo Rezende, de Salvador

Patrocinadores se assustam. Museus recusam. Mas artistas e curadores se engajam no oculto como uma forma legítima de pesquisa

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Legenda: Detalhe da instalação Veja-se (2014), de Chico Liberato, na 3ª Bienal da Bahia (foto: Gillian Villa / Cortesia MAM Bahia)

Se o hoje “sistema” em torno da arte tem sido capaz de absorver tudo, transformando aquilo que toca em produto, encenação, divertimento ou cínico comentário social, o que pode haver ainda duro como pedra, de difícil digestão para esse agressivo apetite? Religiosidade, ocultismo, a suspensão da crença nas leis naturais faz parte da narrativa da arte ocidental, deixando rastros por toda parte. Mas afirmando raramente o próprio nome. No século 20, André Breton e os surrealistas dizem sim a sessões kardecistas de comunicação com o além, na busca pela escrita automática; há o francês Yves Klein e seu fervor por Santa Rita de Cássia; Sol LeWitt, com suas sentenças sobre a arte conceitual declarando serem os artistas místicos, e não racionalistas. Ou, ainda, Joseph Beuys vendo em Rudolf Steiner uma maneira de chegar à sua “escultura social”. Os exemplos são muitos. Precisos e explícitos. E têm com frequência entrado pela porta dos fundos da história.

“Essa continua a ser uma questão muito delicada do ponto de vista institucional; a direção dos museus e o pensamento curatorial têm uma resistência quase natural às pesquisas relacionadas ao oculto, em um sentido geral.” O curador francês Pascal Pique fala sobre sua experiência, enquanto mostra fotos de um de seus projetos, Academia da Árvore, desenvolvido com o xamã (também francês, de tendência druida) Pierre Capelle. Pascal realizou e exibiu os resultados dessa experiência este ano na Bahia e em São Paulo. Na Academia, a intenção é provocar entre pessoas e árvores uma relação espiritual, física, não verbal. Toda experiência é única, pessoal, de difícil resumo ou descrição.

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Legenda: Em Busca do Sagrado (2014), instalação de Ernesto Neto em que ritual do ayahuasca foi realizado para convidados da mostra Histórias Mestiças (foto: Lincoln Yoshihashi)

Outras esferas

Após quase uma década como diretor para a arte contemporânea no Musée des Abattoirs, em Tolouse (França), Pascal Pique decidiu-se pelo oculto como uma forma legítima de pesquisa artística. Segundo ele, são projetos de rara inserção. Patrocinadores se assustam. Museus recusam. Artistas desconfiam de seus companheiros de exposição. Em uma ocupação artística realizada em uma caverna na Europa, onde existem pinturas rupestres, ele exibiu junto aos trabalhos comissionados uma gravação de um técnico especializado em registrar a voz de espíritos no ambiente. Ele havia feito o mesmo na caverna. Na gravação, o público podia ouvir (ou imaginar ter ouvido) uma palavra em sussurro: “Fogo”.

Essa resistência a que Pascal Pique se refere é inegável. Mas ao menos nos últimos anos o tema tem aparecido em diversos momentos. A exposição The Message: Das Medium als Künstler (Kunstmuseum Bochum, Alemanha, 2008), em torno das relações entre a arte e o oculto; Rudolf Steiner and Contemporary Art (Kunstmuseum Wolfsburg, Alemanha, 2010), lidando com o universo do fundador da antroposofia; a retrospectiva dedicada à artista e mística Hilma af Klint no Moderna Museet, em Estocolmo, em 2013; e ainda o norte-americano Paul Folley (o arquiteto das esferas cósmicas), visto em The Alternative Guide to the Universe, no londrino Southbank Centre, em 2013, e em Raw Vision, na Halle Saint Pierre, em Paris, em 2014. E, mais um exemplo, Steiner e Carl Jung na 55ª Bienal de Veneza.

Mas esses casos mostram que o oculto, para ser exibido, tem sido, quase como um disfarce, decorado com o saber científico gerado pela cultura. Etnografia, antropologia, semiologia e, de maneira frequente, a psicanálise servem para explicar em mostras e exposições aquilo que é um mistério. É uma maneira de lidar com o desconforto do paganismo intelectual.

Esse procedimento, é claro, não resolve toda a questão. Há uma necessária diferença entre projetar a imagem do oculto sobre um artista, uma situação cultural ou um tema (em uma sempre perigosa “leitura curatorial”), e ser o entendimento do oculto, e as formas de apresentá-lo, a única chave possível para se aproximar do pensamento e da criação. Na Bahia, como sempre nesses casos, há precedentes.

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Legenda: Palm Observatory (2014), de Teruhisa Suzuki, dentro do projeto Academia da Árvore, de Pascal Pique, na exposição Made By… Feito por Brasileiros, em São Paulo (foto: Ding Musa)

Bahia de Todos os Santos

Chico Liberato e Edison da Luz, dois artistas da cena baiana dos anos 1960 e 70, ainda em plena atividade, têm lidado há anos com o ritual e o sagrado pela via da ayahuasca – o “remédio para todo mal”, feito com a mistura do cipó mariri e as folhas de chacrona. Edison da Luz, um dos decisivos membros do radical e politizado grupo Etsedron (Nordeste ao contrário), realiza em suas esculturas e pinturas não uma ilustração ou documentação de visões místicas. Seu trabalho não é de forma alguma sobre a ayahuasca, mas é, sobretudo, com as forças que se apresentam nos rituais com as plantas. Na verdade, está no extremo oposto de um projeto como o realizado pelo artista Ernesto Neto para a exposição Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. No caso de Neto trata-se de uma encenação do gesto sagrado, enquanto, para Edison, o sagrado é exatamente aquilo que resiste a qualquer encenação.

Em uma peça da série de mandalas realizada por ele, pinturas em diferentes tamanhos, Edison diz pintar (um exemplo) a raiva de um grupo sobre alguém. Não a representação do sentimento, mas a própria raiva, o retrato dessa força em ação. Chico Liberato – mais uma vez trata-se de pinturas – relata o que a natureza é fazendo da imagem no quadro uma janela aberta para uma energia capaz de conduzir o real para além do tempo e da cultura. Chico Liberato e Edison da Luz não podem ser aprisionados no formalismo crítico, etnografia de ocasião ou psicanálise selvagem. Eles já estão em outras esferas.

*Artigo publicado originalmente na edição #21