O romancista Dalcídio Jurandir via nos barqueiros paraenses, com suas velas que se levantam para o sol, “o misterioso poder de todo o inesperado encanto de Belém”. Em texto publicado em 1941, ele descreve: “Os canoeiros, no amanhecer, levantam as velas para o sol. Houve na véspera uma grande chuva. As canoas entram na doca, atordoadas pelo vento e batidas pela maresia. As velas, agora pesadas e gotejantes, estão subindo magnificamente para o sol. É o Ver-o-Peso colorido de velas, cheio dos meus irmãos canoeiros da Baía de Marajó, do Salgado, do Tocantins. É o Ver-o-Peso, no amanhecer, quando as velas erguidas se enchem de sol e parecem crescer sobre os telhados da Cidade Velha como se toda a cidade, depois da chuva e da noite, acordasse para ver surgir o que todos os caboclos, o que todos os canoeiros esperam na sua vida de bubuia nas águas: a Cobra Norato que dorme debaixo da Sé”.
Encontro da floresta com a cidade, centro de comércio de mercadorias do Baixo Amazonas e principal porto de chegada de produtos europeus no século 18, o Mercado Ver-o-Peso, com todo seu encanto, reúne mais de mil comerciantes cadastrados, mas não só: junto a eles está também uma comunidade cativa de artistas e fotógrafos que veem o local como memória constitutiva da cidade.
Tempo Dilatado
“É um lugar meio mágico, como se o coração da cidade fosse ali”, diz Dirceu Maués, cuja relação com o mercado remete à infância. O fotógrafo lembra-se de quando precisava acordar no sábado cedo da manhã para acompanhar seu pai às compras. Foi nessa fase que começou a construir seus próprios brinquedos, a partir de materiais que encontrava, como as bandejas de isopor que viravam aviõezinhos. O fazer artesanal, de acordo com ele, corresponde às gambiarras que os trabalhadores do mercado fazem para resolver problemas cotidianos. Foi esse interesse pela manualidade, inclusive, que levou Maués de volta ao Ver-o-Peso na fase adulta, lançando-se no projeto de fotografar o mercado com câmeras pinhole, feitas com madeira, latas e caixas de relógios. Mas, para além da construção das máquinas – que causavam identificação e curiosidade –, o que interessou a Maués foi trabalhar a noção de um tempo que, no mercado, transcorria de outro modo. “As pessoas que trabalham no Ver-o-Peso têm uma relação muito forte com o interior e com a cultura ribeirinha, e quem vive no rio (e do rio) tem um tempo diferente. O tempo não é o do relógio, mas o da maré, do sol, da lua, algo mais conectado com a natureza e, de alguma forma, na feira há um pouco disso também”, diz.
Na série Ver-o-Peso pelo Furo da Agulha (2004), desenvolvida no decorrer de um ano, essa percepção aparece tanto no prazo estendido do projeto como impressa em cada uma das imagens. “É como se o tempo que eu procurava, mais dilatado, passasse para dentro do dispositivo fotográfico”, diz Maués, que programava a velocidade de abertura do obturador de acordo com a duração das cenas. O que se vê, agora, nas imagens de um urubu na ponta do barco ou de uma menina que se volta para a câmera é o resultado da tradução temporal de alguns movimentos: o quanto leva a parada antes de um voo ou o olhar curioso de uma criança.
O envolvimento neste trabalho acabou, ainda, se desdobrando no vídeo Feito Poeira ao Vento (2006), para o qual Dirceu produziu uma cobertura fotográfica de 360º do local. Para realizar o feito sem pausas, ele alternou o uso das câmeras – foram cerca de 40, com média de 30 poses cada uma, durante um período de quatro horas – e contou com a ajuda de amigos, que iam numerando as máquinas conforme as imagens eram tiradas. Os erros, os ruídos e os acasos capturados nessa ação ininterrupta – transpostos para o vídeo – se configuram justamente no que as imagens apresentam de mais potente. Em movimento, elas também são acompanhadas por um som que lembra as batidas de um barco a motor.
Nossa Senhora do Ver-o-Peso
O envolvimento de longa duração é uma constante entre os artistas que se aventuram no interior do complexo do mercado. É o caso também de Nay Jinknss, que documenta o espaço há mais de uma década. Interessada inicialmente na arquitetura, nas cores quentes e nos contrastes de luz do local, a fotógrafa foi se interessando cada vez mais em documentar as pessoas. “Conseguia fazer imagens dos urubus, da torre, da Praça do Relógio, mas comecei a me questionar sobre o fato de que essas imagens não estavam levando nenhum retorno para comunidade que estava ali inserida”, diz.
Se, no início, suas fotografias retratavam usuários de drogas do local desde uma perspectiva distanciada, a câmera passou a ser utilizada para captar suas emoções, dores e amores. A artista atribui a mudança de postura ao período em que morou no Rio de Janeiro e percebeu que, fora de Belém, era tida como negra, identidade que antes não assumia para si. “Foi ali que entendi que era uma mulher negra e pensei: se só agora estou entendendo o que sou, de que maneira vou dialogar com a minha comunidade?”, lembra. “A minha cor, as tatuagens e o modo que me expresso acabam me aproximando das pessoas do mercado e assim vou criando laços.”
Os laços foram reforçados quando Nay Jinknss passou a utilizar o celular como instrumento de trabalho, o que, além de ser menos intimidador, permitia que ela mantivesse os olhos em seus retratados. Agora é como se suas fotografias tivessem se deslocado de uma dimensão macro – a arquitetura e o espaço – para outra micro, o universo íntimo de cada um dos personagens.
Em suas imagens, que possuem títulos como “Há mistério em quase tudo ou há muitos modos de enxergar” e “Quanto mais o fogo ardia ela dava gargalhada”, as narrativas se constituem na composição de cenas, colocando os retratados como atores e atrizes da sua própria história. “Tu já pensou em ser ator?”, ela perguntou a um deles, fazendo um convite para a encenação. “Se o coloco como um personagem, afasto a visão de que é apenas um drogado”, diz a artista. Em suas incursões pelo Ver-o-Peso, ela já pediu para que interpretassem Nossa Senhora de Nazaré (“Hoje você vai ser Nossa Senhora e vai emocionar os paraenses”, disse a uma das modelos) ou Plácido, o caboclo que encontrou a imagem da santa às margens do Igarapé Murucutu.
Ponto de Encontro Ancestral
A fabulação também está nos trabalhos que Armando Queiroz realizou no (e a partir do) Ver-o-Peso. O artista, que lembra de uma época na qual a cidade não tinha supermercados e o Ver-o-Peso assumia a função quase exclusiva no suprimento de alimentos e mercadorias, contou com os trabalhadores e frequentadores do local para produzir o vídeo 252 (2007). Nesse trabalho, os participantes leem os nomes das 252 pessoas que foram assassinadas no episódio que ficou conhecido como Massacre do Brigue Palhaço, quando, no contexto da Guerra da Independência do Brasil, em 1823, um grupo responsável por saques e outros casos de desordem acabou detido a bordo de um brigue no porto, bem em frente do Ver-o-Peso. Ali, confinados no porão dessa embarcação superlotada e sem ventilação – havia apenas uma fresta para a entrada de ar –, os prisioneiros entraram em desespero e, em resposta, a guarnição, além de tiros, lançou cal virgem sobre a pequena abertura. “Quando tive acesso à lista de mortos, meu interesse foi dar rosto a esses nomes e sugeri que os trabalhadores emprestassem imagem e voz como uma forma de homenagem”, diz Queiroz. “É muito significativo porque, se a gente pudesse dar um salto no tempo, muito provavelmente pessoas com características e vivências iguais às que emprestam seu rosto poderiam ser aquelas que foram assassinados.”
No processo para a feitura do vídeo – que contou com pequenas equipes incumbidas não só de recrutar participantes para a leitura, mas de explicar a eles o acontecimento e, assim, trazê-lo à tona novamente –, Queiroz foi abordado por um feirante que disse ser descendente de Eduardo Angelim, um dos líderes da Cabanagem, e possuir uma espada que teria pertencido a ele. O objeto acabou integrando a exposição Marcantonio Vilaça, em 2010 e, apesar de não ter sido comprovado como pertencente a essa época, o que interessava ao artista era justamente a possibilidade de reconstruir a memória em torno da Guerra dos Cabanos, que acabou esquecida pela história. “O simples fato de alguém acreditar que era uma espada cabana tinha muito mais força narrativa do que atestar se ela de fato era”, diz Armando Queiroz.
O artista, que possui uma série de trabalhos realizados no Ver-o-Peso – o texto citado no início desta curadoria foi usado em uma instalação sua –, já cobriu a estrutura do mercado com o desenho da silhueta do interior de uma lâmina de barbear. “Pensei na possibilidade de estender esse perfil para que o vermelho da lâmina pudesse novamente vascularizar aquelas instalações todas. Acho que havia um desejo de estratificação, de não só revelar, mas de me relacionar com essas histórias outras do Ver-o-Peso”, explica. “Há algo de uma ancestralidade, desse ponto de encontro e de entreposto. Não é à toa que Ver-o-Peso é onde é.”