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Frame de Paisagem Danada (2020), de Lucas Bambozzi (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 07/07/2020 - 12:11
A danação da paisagem
Em vídeos produzidos utilizando o Earth Studio, Lucas Bambozzi discute a paisagem devastada pela mineiração nos arredores de Belo Horizonte
Lucas Bambozzi

Na paisagem que circunda Belo Horizonte, a mineração quase sempre ocupa o alto da cadeias de montanhas. Não era vista facilmente até que começaram a surgir formas de visão aérea mais acessíveis, cartografias viabilizadas por dispositivos pessoais, veículos de passeio do tipo ultraleve, helicópteros, drones e ferramentas do Google, afrontando o controle do espaço aéreo por parte das mineradoras. Se antes usurpavam apenas as entranhas da terra, de forma barulhenta, mas que pouco se dava a ver, a danação da paisagem passou a ser de conhecimento muito mais amplo, principalmente pela ruptura criminosa de barragens mal construídas e pouco cuidadas, em 2015 (Mariana) e 2019 (Córrego do Feijão).

Agora, o visível no horizonte das alterosas já não pode esconder aquilo que Achille Mbembe chama, em Necropolítica, de perda de “continuidade entre o céu e a terra”, uma zona da paisagem onde acontece a devastação dos recursos de terra, água, espaço aéreo – também sonoro, olfativo – que se intromete nos olhos como poeira de minério de ferro suspenso no ar.

Em uma espécie de lógica reversa, os vídeos desta seção [em construção] foram realizados com as máquinas de ver atuais, ubíquas, que permitem passeios rasantes por onde antes era espaço de controle privado (claro, com a conivência do estado). Retratam crateras de extração de minério de ferro de grandes mineradoras multinacionais, espalhadas para além das fronteiras do que antes era conhecido como quadrilátero ferrífero de Minas Gerais.

Vemos o tom marrom dessas crateras e barragens de rejeitos da mineração invadir o cume verde das montanhas, em rasgos explícitos, obscenos, em imagens que possuem uma natureza híbrida, e se situam esteticamente entre a fotogrametria o vídeo/cinema e as animações de games. As sequências foram produzidos com a ferramenta Earth Studio, que agrega imagens aéreas de diferentes fontes a partir de coordenadas de latitude e longitude, de locais existentes na base de dados do Google. A série faz parte de estudos feitos para o filme Lavra (por mim dirigido, a partir de roteiro de Christiane Tassis e produção da Trem Chic), em construção, a ser finalizado ainda em 2020. O mapeamento aéreo tem lugar na narrativa do filme em torno das coisas que acabam, das paisagens que desaparecem e produzem um sentimento de “consumição” da vida, que exaure, em agonia. Remetem ao conceito de solastalgia, uma síndrome associada ao sofrimento causado por uma mudança ambiental muito abrupta. Pode ser uma um desajuste existencial, às vezes bastante complexo, pela falta de reconhecimento do próprio ambiente onde se vive em função de uma catástrofe, uma alteração radical da paisagem.

Os vídeos não exageram um retrato de fim de mundo em que nos encontramos, mesmo que as montanhas danadas e cariadas estejam “lá” longe nas Minas Gerais, no Pará ou Amapá (ou no Congo e Venezuela quando se pensa nos metais aplicados mais especificamente a dispositivos recentes de comunicação). É um céu que cai, assentido pelos homens, solapando as montanhas da paisagem, substituindo a vida dos rios por lama tóxica, cujas consequências já não são locais, mas que atinge a todos, como a pandemia em que vivemos.

Cabe pensar porém que a pandemia da Covid vai passar, como vem passando em locais que antes eram epicentro de virulência. Mas pelas frestas do futuro que vemos, por aqui, assim como fornecemos grande parte do ferro para a revolução industrial lá de fora (e nos restou cada vez mais paisagem revirada) tudo indica que se/quando tudo passar lá fora, continuaremos como epicentro de outras tragédias, e cada vez mais sozinhos, nesta terra extorquida que tanto prometia ser benevolente e alegre.

As paisagens não voltarão, não há vacina para isso, a não ser que seja contra a ganância, contra a lógica que coloca todo interesse econômico acima da vida.

Veja os vídeos da série Paisagem Danada aqui.