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Samson (1985), de Chris Burden (Foto: Reprodução / Galeria David Zwirner)
Postado em 09/06/2020 - 6:42
Demissões em massa e mudanças de base
Cortes de funcionários de instituições culturais, sob a crise da Covid-19, evidenciam relações de trabalho que reiteram desigualdades sociais

Nas últimas semanas, Inhotim, Museu Afro Brasil, Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Instituto Tomie Ohtake e Sesi suspenderam contratos e demitiram funcionários. Para além de uma resposta imediata à crise instalada pelo coronavírus na saúde financeira dos museus e instituições culturais, o quadro evidencia problemas enraizados no setor, como as desigualdades de gênero, raça e classe, e os limites das políticas públicas para a cultura.

No Tomie Ohtake, cerca de 20% dos funcionários foram demitidos de todas as áreas de escritório. Entre os critérios estabelecidos para as demissões, a instituição levou em conta o tempo de casa e a possibilidade de realocação do profissional nas equipes remanescentes, além da situação socioeconômica dos funcionários. Estamos passando por uma sobreposição de crises: além da econômica, que é global, há a crise política no Brasil e seu reflexo na cultura”, diz Felipe Arruda, diretor do Núcleo de Cultura e Participação do Tomie Ohtake – o Instituto foi o único que concedeu uma entrevista para a reportagem da seLecT.

As outras instituições, entre Inhotim, CCBB, Museu Afro Brasil e Sesi, foram procuradas, mas se manifestaram apenas por meio de nota. Após a negativa, a revista enviou a todas um roteiro de perguntas sobre quantos funcionários foram demitidos, quais foram os critérios usados e as medidas tomadas antes das demissões. O Inhotim e o Museu Afro enviaram respostas por escrito, enquanto as outras instituições não responderam. 

Primeira alternativa: home office
O Instituto Tomie Ohtake afirma ter tido dificuldade de arcar com os custos fixos do espaço e do quadro de funcionários, à medida que a programação foi suspensa e, com ela, a possibilidade de captação de recursos. “Não utilizamos dinheiro público direto e não temos nenhum patrono ou apoiador fixo. Nossa programação é feita 100% por captação”, explica Arruda.

Diante dessa situação, a primeira medida tomada foi a adoção do trabalho em regime home office. A decisão foi seguida de redução salarial dos funcionários celetistas, pela Medida Provisória 936/2020, que prevê a estabilidade do emprego com a complementação da renda do trabalhador por parte do Governo Federal. Em um primeiro momento, os contratados como Pessoa Jurídica tiveram os salários mantidos, mas acabaram sendo afetados por uma redução de 20%, que atingiu a todos os funcionários, com exceção da diretoria, cuja redução foi de 30%. Como última alternativa, a instituição optou pelas demissões.

“Se estivéssemos falando de uma instituição que tem dotação orçamentária, poderiam haver outras soluções, mas estamos nos desdobrando para sobreviver e captar recursos”, continua Arruda. “Não aconteceram cancelamentos de contratos com patrocinadores já firmados, mas acordos ainda não formalizados ficaram em suspenso e outros patrocinadores em potencial só querem discutir a possibilidade depois da quarentena”.

Em Inhotim, o home office e a redução parcial de salários também foram adotados mas, ainda assim, a instituição realizou 84 desligamentos, em todos os setores. Todas as diretorias foram extinguidas temporariamente e foram mantidos os cargos que contavam com remuneração mais baixa, reforçando o compromisso com os funcionários que moram em Brumadinho, que são 74,5% dos 365 restantes. Os setores administrativos da instituição seguem com a rotina online e os encarregados da manutenção do parque e das galerias estão trabalhando em jornada reduzida, esquema de rodízio e utilizando os equipamentos de proteção indicados pelos órgão de saúde.

Toda a programação dos CCBBs é feita por meio de projetos selecionados via edital. Com a crise da Covid-19, serviços que já estavam previstos passaram a ser renegociados para que sejam retomados apenas com a volta das atividades presenciais. Nos últimos dois anos, o educativo da instituição foi realizado pelo Ja.Ca, que ganhou o edital pelo terceiro ano consecutivo. “Não houve assinatura de um novo contrato, pois o projeto que inscrevemos era presencial e não havia condições de seguir com os CCBBs fechados”, diz Samantha Moreira, coordenadora geral do projeto, para a seLecT. Finalizamos nosso segundo ano de atuação em abril e as atividades presenciais foram suspensas em março. Daí, tivemos um período de home office, articulando todas as obrigações trabalhistas e fiscais com a equipe.” 

Os projetos patrocinados ou contratados pelo CCBB, sejam exposições ou programas educativos, não acontecem por tempo indeterminado, mas pelo período de um ano. “Não é um trabalho de contratação contínua e os colaboradores sabem desse período. Já propusemos ao CCBB para pensar esse programa bianualmente, pelo menos, para ir crescendo e se enraizar com o lugar e criar conexões com diferentes articulações de público e de contextos. Estamos conseguindo rearticular algumas coisas, quem sabe exista a possibilidade de voltar e rearticular outras”, diz Moreira. 

O Museu Afro Brasil não divulgou os números de demissões, mas afirmou, em nota, que o contingenciamento da verba destinada à instituição foi uma medida tomada pelo governo e, além disso, o museu ainda sofreu com a perda da receita de sua bilheteria e loja. Igualmente, o Sesi não informou quantos funcionários foram demitidos e se limitou a declarar que houve uma queda em sua receita. 

Museologia social
Primeira curadora negra a participar do Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, Luciara Ribeiro foi demitida junto a outros assistentes da área. Para ela, as instituições devem pensar em planos emergenciais para períodos como esse. “Um museu não se faz só de exposições e grandes eventos, mas de sua equipe. Devemos buscar uma organização da classe artística e procurar estruturas que nos levem a pensar em um bem comum maior”, diz a pesquisadora.

De acordo com ela, este é o momento de nos aproximarmos dos debates da “museologia social”. “Talvez estivéssemos em uma fase em que a arte estava direcionada ao mercado, a uma certa indústria criativa, que estava preocupada em demonstrar que a cultura gera riqueza, como forma de convencimento para a criação de recursos públicos e privados”, afirma Ribeiro. “Mas a base dos museus deveria estar no social, na educação e na pesquisa, que foram as áreas mais afetadas agora.”

Nos últimos anos, o debate sobre representatividade de grupos historicamente oprimidos dentro das instituições de arte ganhou força. O questionamento da hegemonia da branquitude e do patriarcado, no entanto, mostra que ainda há muito trabalho a ser feito, na medida em que a inserção de afrodescendentes, mulheres, indígenas e grupos LGBTQIA+ ainda não mudou as estruturas de poder nas instituições, cujas dinâmicas ainda seguem engessadas.

“Quando o museu demite funcionários que têm um perfil pouco representado em suas estruturas e que têm condições frágeis na sociedade, acaba por cair num recorte de classe e raça. Isso deveria ser repensado, criando novas políticas, pois há uma manutenção de poder”, diz Ribeiro. “A arte já é elitista e a tendência dessa crise é elitizar cada vez mais. As discussões sobre representatividade e diversidade não foram implementadas nas bases dos museus, ficaram, em muitos casos, só na representação, que é importante, mas por si só não se sustenta. Deveria haver uma mudança na estrutura, tornando essa mudança política. Mas o que vemos nesse momento é um retrocesso de ações que foram construídas ao longo dos últimos anos.”

Limites das leis de incentivo
Leis de incentivo como  Rouanet, Proac e Promac funcionam pela aprovação de projetos junto aos governos federal, estadual e municipal, mas a captação de recursos é feita pelos próprios proponentes. Ainda que patrocinadores firmem relações contratuais com as instituições beneficiadas, não há medidas que regularizem os patrocínios a longo prazo ou distribuam os recursos captados de forma regular entre os espaços, o que acaba beneficiando espaços com maior visibilidade, circulação e volume de público.

Desde o governo Michel Temer, temos um investimento cada vez menor de dinheiro público na cultura e a situação se agrava com o atual governo e seu descaso com a cultura (leia O iminente colapso do setor cultural). Com as instituições fechadas, a captação de recursos se torna ainda mais difícil, o que reforça a necessidade de ampliação dessas leis para a criação de políticas a longo prazo, distribuição mais igualitária de recursos e regulação dos regimes laborais dos trabalhadores da cultura.

“As políticas públicas têm papel fundamental, mas é necessário repensá-las urgentemente”, diz Felipe Arruda. “Deve haver uma sensibilização das empresas para entender que, nesse momento, os aportes não devem ser vinculados a projetos específicos, mas às instituições como um todo. As empresas têm que reconhecer que elas têm um papel importante, pois podem fazer um aporte com 100% de isenção fiscal para garantir a construção de uma sociedade mais desenvolvida, com cidadãos mais preparados, críticos. Precisamos pensar a manutenção das instituições, para além dos eventos midiáticos e exposições blockbuster”, argumenta.

Essa fragilidade das leis de incentivo é o que leva muitas instituições a operar com um plano de captação de recursos combinado, em que diferentes práticas e atividades geram a renda necessária para o funcionamento da instituição. Ou seja, além dos patrocínios, os museus recorrem à bilheteria, à loja e a doações diretas.

O Inhotim, por exemplo, obtém recursos via leis de incentivo, mas o montante captado é sempre menor que o autorizado. Para sobreviver, a instituição também conta com patrocínio direto e renda advinda de bilheteria, eventos, aluguel de espaços e carrinhos para circular nas trilhas do parque – fontes que tiveram redução drástica por conta da pandemia. “Em relação às receitas totais obtidas em 2019, temos previsão de que haja uma diminuição entre 50% e 65% em 2020. Essa redução torna inevitável que Inhotim reavalie a estrutura e o planejamento financeiro”, afirma a instituição à seLecT.

De acordo com a nota enviada, todo o orçamento do Instituto é utilizado para cobrir as despesas de funcionamento, incluindo a folha de pagamento. “O Inhotim nunca ficou fechado por tanto tempo, mesmo nas outras situações de crise que enfrentamos, em 2018 e 2019. Mantemos relações sólidas e de longa data com as nossas empresas apoiadoras, que em sua grande maioria mantiveram seus aportes para este ano. A captação de recursos junto aos patrocinadores estava em processo, mas até março de 2020 o montante somado não totalizou o necessário para a nossa manutenção.”

Outro aspecto problemático na formulação das políticas públicas para a cultura é seu foco na entrega dos resultados. Isso fragiliza ainda mais as relações de trabalho no meio cultural (leia Pesquisa seLecT com trabalhadores da arte), que, além de precarizadas, costumam ser muitas vezes temporárias e sem vínculos empregatícios.

O diretor do Tomie explica que o dinheiro que entra pelo plano anual das leis de incentivo paga os projetos, a estrutura física, os custos de debates, além do trabalho de curadores, montagem e contas básicas do Instituto. Quando não se consegue captar o mínimo para a realização de projetos, que corresponde a cerca de 30% do valor aprovado em lei, no entanto, exposições e eventos ficam comprometidos.

A dificuldade, segundo ele, é que, uma vez que a captação foi feita, é necessário entregar o resultado, mesmo que o valor captado não seja suficiente para arcar com todos os custos. “Não se pode gastar tudo com funcionários porque, inclusive juridicamente, é necessário entregar o projeto submetido na lei. Ou seja, as exposições vão ter que ser realizadas assim que houver condições.”

As leis de incentivo possuem brechas que impedem um planejamento a longo prazo , fazendo com que resultados sejam colocados acima dos trabalhadores. “Se houvesse uma ação coordenada da Secretaria da Cultura com as empresas para avaliar se as verbas destinadas a projetos poderiam ser realocadas para o pagamento de pessoal, teríamos uma saída. Agora, se você tem que entregar o objeto independentemente da situação, não é possível gastar a verba com a equipe”, diz Arruda. 

Alternativas para crise
Em um projeto recente, o Ação Coletiva Art Handler’s (A.C.A.H), os montadores de exposições de arte criaram um coletivo para promover ações solidárias e de apoio entre os profissionais que estão entre os mais necessitados desta área, que segue desregularizada e precarizada. Seus contratos acontecem apenas pontualmente para montar exposições específicas ou nem chegam a se formalizar (leia sobre outras ações para enfrentar a crise na reportagem Boletos vencidos). Entre as ações coletivas, os montadores estão captando recursos via crowdfunding, para distribuição de cestas básicas entre os trabalhadores da área.

Uma iniciativa pública aprovada pelo Senado, em 2/6, é o Projeto de Lei nº 253, um benefício aos trabalhadores da cultura que prevê três parcelas de R$ 600 pelo Programa de Auxílio Emergencial para Trabalhadores do Setor Cultural e para Espaços Culturais. A proposta está em trâmite para a aprovação do presidente Jair Bolsonaro. 

Na busca de alternativas diante da crise, algumas questões importantes aparecem em texto escrito a quatro mãos entre João Fernandes e o Marcelo Araujo. Em O Normal Não Era Normal: Que Museus Queremos Depois da Pandemia?, o curador e o museólogo consideram como o museu pré-pandemia perpetuava injustiças sociais, na medida em que vínculos trabalhistas frágeis, sobrecarga de trabalho e baixa representatividade de gênero e raça só reiteravam as desigualdades sociais. Esse pensamento a respeito das instituições museológicas, infelizmente, pode ser facilmente estendido para o funcionamento do sistema de arte como um todo, desde a produção artística até o ensino e a produção crítica.

A crise do coronavírus alterou não apenas o programa das instituições, mas sua própria estrutura de funcionamento, como as relações com as comunidades e as dinâmicas de trabalho. Deixou também evidente que os problemas surgidos durante a crise exigem medidas não apenas emergenciais, mas mudanças de base.