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#fumaçaantifascista no Largo da Batata (Foto: Galeria Reocupa)
Postado em 03/07/2020 - 2:17
Manifestações: política e estética em tempo de crise
A sobreposição de uma crise sanitária, política e econômica se reflete em ações artísticas de protesto no espaço público e na internet
Leandro Muniz, Nina Rahe e Paula Alzugaray

Em 12/5, comemorava-se o dia internacional da enfermagem e o Brasil já era líder mundial em mortes de profissionais da saúde por Covid-19. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de enfermeiros mortos no país em decorrência do novo coronavírus representava, naquele momento, 38% do número de mortes em todo o mundo. Desde então, o luto e a memória de integrantes dessa categoria, que está entre as mais atingidas pelo vírus – devido à excessiva exposição e à falta de equipamentos de proteção adequados – vêm sendo ritualizados em sucessivos atos. 

Naquela data, enfermeiros devidamente afastados, em respeito às normas de distanciamento social, ocuparam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, vestindo placas com identificação das vítimas e gritando seus nomes. Quinze dias depois, o mesmo local foi palco de manifestantes portando cruzes pretas. Em outras ações, em junho, cruzes foram fincadas nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro, e da Praia de Camburi, em Vitória, no Espírito Santo, em número análogo ao de mortos pela Covid-19. No Rio, a iniciativa da ONG Rio da Paz gerou reações agressivas por parte dos apoiadores do governo Bolsonaro. 

A manifestação dos enfermeiros em Brasília, na Folha de S. Paulo de 13/5 (Foto: Paula Alzugaray)

O impacto dessas dramaturgias do luto se amplifica na internet, em imagens que reivindicam a memória das dezenas de milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas, caso o governo estivesse tomando providências para conter a expansão do vírus e proteger a população. A pandemia, no Brasil, vem catalisar problemas políticos entranhados na estrutura social: descaso com a saúde e a educação; desmonte da cultura; violência do Estado contra a população afrodescendente e indígena; medidas de regulamentação econômica que reiteram a concentração de renda e as desigualdades sociais.

As manifestações das equipes de saúde se somam hoje a protestos antifascistas, campanhas antirracismo, contra a violência policial e atos em defesa da vida indígena e do meio ambiente. Os artistas participam deles como proponentes ou colaboradores, agentes diretos ou indiretos em redes estético-políticas, que operam além dos códigos de autoria ou originalidade reiterados pela arte; ou das estruturas de poder sustentadas pelos partidos políticos. 

Na manifestação, afirmação estética e participação política se encontram. Ações de profissionais da saúde, torcidas organizadas, filósofos, sociólogos, cientistas, políticos, advogados, jornalistas, professores, estudantes e artistas se retroalimentam, ecoando uma multiplicidade de vozes que rejeitam a barbárie atual. Elas acontecem nas ruas, sob a orientação de que se busque atender às medidas sanitárias de distanciamento e proteção, e nas redes digitais, que em tempos de pandemia tem se acentuado como outra forma de espaço público possível. 

Fumaça como protesto
Inspirados na expressão de torcidas organizadas de times de futebol, artistas ligados à Galeria Reocupa e à Ocupação 9 de Julho criaram o movimento Fumaça Antifascista. “A gente sabia que a manifestação ia acontecer em São Paulo e pensamos em soltar fumaças em pontos estratégicos, para filmar de cima, e criar imagens que pudessem circular e dessem conta de que os manifestantes pró-Bolsonaro estavam cercados e não têm todo esse poder”, diz o grupo.

A fumaça – sempre vermelha e preta, simbolizando o movimento antifascista – já foi realizada no Largo da Batata, na Av. Paulista, em ações na rua, realizadas com a saída de grupos ligados à Reocupa para distribuição de cestas básicas, além de outras iniciativas individuais. Como ela dura cerca de 30 segundos antes de desaparecer no ar, uma das preocupações  é como registrar as imagens deste processo. O uso de drones, em duas ocasiões, permitiu contextualizar a cena por meio de uma visão panorâmica.

“Sempre tivemos a ideia de promover ações no espaço público, mas também na rede, para que quem não pudesse e não concordasse em ir para a rua tivesse como fazer a fumaça onde estivesse”, os artistas do grupo complementam. Na opinião deles, dada a relevância simbólica e social que a Fumaça Antifascista pode alcançar, a autoria do trabalho passa a ser o menos importante. 

Como um dos artistas participantes das atividades na Galeria Reocupa, Lourival Cuquinha também está realizando o projeto Coronga Vírus Mate o Presidente! A partir do uso generalizado de equipamentos de proteção contra o vírus e refletindo sobre os diferentes sentidos da máscara ao longo da história da cultura e da política – dos ninjas aos black blocks –, o artista está produzindo uma série de fotos e vídeos que circulam pelo Instagram. Em tom cômico e paródico, seu personagem salta sobre obstáculos, tenta golpes de artes marciais e luta contra a câmera que o observa.

“Agora que estão querendo que as ideias plurais sejam exterminadas, a gente começa a se posicionar contra isso. A arte tem o sentido de nos deixar menos impotentes”, diz Cuquinha. “Ela tem esse poder de denunciar sem ser panfleto e se junta a outros métodos e estratégias de luta.” 

Palavras de ordem, faixas, bandeiras e hashtags

Já Basta I (2019), de no Martins (Foto: Pavão Filmes)

Em 2019, o artista No Martins produziu uma série de pinturas de grandes dimensões, nas quais figuras negras de olhar raivoso dirigido ao observador eram circundadas de notícias de jornal sobre violência policial contra a população afrodescendente, sobre sua exígua presença nas universidades ou outros dados estatísticos de desigualdade social. Nas bordas das pinturas, lia-se a hashtag #JáBasta, que recentemente foi aplicada com silkscreen em bandeiras pretas, para serem usadas nas manifestações. “Esse momento não é inédito na nossa história. A hashtag vem antes do acontecimento trágico com o George Floyd ou com o João Pedro”, diz o artista à seLecT. “A hashtag é uma apropriação da linguagem das redes sociais, como forma de defender ideias e difundir imagens. A intenção é justamente que se torne repetitivo, como uma maneira de propagar a ideia e dar um grito. Isso já não pode mais acontecer.”

#JáBasta conta com mais de 1100 publicações no Instagram, gerando uma reflexão sobre como o trânsito da frase por diferentes mídias reforça a indignação contra os fatos, seja dentro das instituições, na rua ou na internet. “Nas pinturas, havia o semblante do personagem, que também é um protesto, pois é um olhar duro sobre o espectador, contextualizado pelas manchetes de jornais. Nas bandeiras nas ruas, a hashtag remete a muitas coisas, ao Bolsonaro, ao genocídio da jovem população negra, às desigualdades sociais, de acordo com o lugar onde estão”, diz. 

No Rio de Janeiro, a associação temporária Faixa Protesta produz cartazes de grandes dimensões nas quais frases poéticas são levadas para manifestações, introduzindo ruídos e ambiguidades em meio às palavras de ordem. “A gente participou da segunda manifestação antirracista, em junho. Levamos uma faixa que se chama Marighella, Marielle, Quanto Mar, mas existia um aparato repressor muito grande no caminho e não a hasteamos, pois precisaríamos de três pessoas para carregá-la” diz o grupo em entrevista à seLecT. “Talvez o Faixa Protesta tenha mais a ver com a pré-pandemia. Durante a pandemia, a gente deu uma parada, mas desde o Ato da Democracia, não tem mais volta, a gente vai estar nas ruas, porque já passou o limite de deixar a barbárie acontecer. Crise completa da saúde, aumento da violência policial, é um genocídio geral. No mundo inteiro as pessoas estão rompendo a quarentena e protestando. Existe uma mobilização virtual, mas o que resolve é a rua.”

A chamada à rua também é a pauta do Grupo de Ação, que se define como um grupo suprapartidário composto por ativistas e profissionais das artes, do direito, da saúde, da comunicação etc., todos unidos pelo #ForaBolsonaro. 

Primeiro e segundo ato
Se os profissionais da saúde incorporaram a performance como forma de chamar a atenção para o descaso político no combate ao coronavírus no país, a “política genocida” do governo Bolsonaro diante da pandemia é também o disparador das ações do Grupo de Ação. “Bolsonaro e seus seguidores zombam dos mortos e conspiram contra políticas que poderiam salvar vidas. O novo fascismo prefere churrasco, pastel, jet-ski e cavalo, enquanto hospitais se enchem e há filas de doentes à espera de tratamento adequado”, afirma o grupo, em chamada pública para o primeiro ato nas ruas, realizado em 13/6, na Av. Paulista. “Não vamos assistir passivamente à transformação do país, mais uma vez, num imenso cemitério silenciado por tanques”. 

Em face à história mórbida que vem sendo escrita diariamente no Brasil sob Bolsonaro, o Grupo optou por basear sua produção audiovisual, de flyers, gifs e cartazes, sobre uma iconografia da morte. Os atos se apresentam como réquiens. Parte da comunicação visual do movimento, realizada por artistas de um subgrupo autodenominado Fora B, do qual participa a artista Dora Longo Bahia, articula imagens da destruição da vida da população e da natureza brasileiras. “O Grupo de Ação é formado por pessoas de diferentes áreas, que se uniram para compor um conjunto de ações em oposição ao ‘governo da morte’ do Bolsonaro”, diz a integrante Cássia Aranha. “Cada participante contribui dentro de sua área de atuação. Nós aqui do Fora B, tudo que fizemos até agora envolve diferentes camadas, desde produção textual a performances e intervenções públicas”.

O subgrupo tem participação na definição da dramaturgia e da visualidade dos atos urbanos do Grupo de Ação. O primeiro ato reuniu cerca de 150 pessoas, afastadas em precaução, mas relacionadas pelos gestos coordenados de ajoelhar-se – uma referência à postura corporal do policial que matou Floyd por asfixia, e que foi repetida em milhares de manifestações mundo afora – e empunhar o braço direito para o alto – evocando os Panteras Negras, que combateram a discriminação racial nos EUA dos anos 1960 aos 80. 

O resultado da primeira manifestação do Grupo de Ação, uma liturgia do luto àqueles que morreram sem direito ao ritual de despedida, guarda próxima semelhança com as instalações fotográficas de Christian Boltanski. As imagens de vítimas de violência do Estado – por ditadura militar, violência policial ou Covid-19 –, impressas em preto e branco e legendadas com nome e causa mortis, carregadas pelos manifestantes dispostos geometricamente em fileiras que remetiam à formação de grids e redes, eram como a representação teatral e performática dos arquivos de mortos construídos pelo artista francês. De fato, o grupo assume Boltanski entre suas referências. Assim como a série Marcados (1980-83), de Claudia Andujar. 

O segundo ato do Grupo de Ação está programado para acontecer sábado 4/7, às 14h em frente ao Masp. Entre os homenageados, indígenas, a maioria líderes, mortos na pandemia, como Mário Puyanawa, Bernaldina Macuxi, Messias Martins Moreira Kokama, Aldevan Brazão Elias e Paulo Paiakan. Entre os materiais de divulgação, um vídeo com uma lenta panorâmica de uma floresta queimando e o texto: “Este é o destino de nosso país? Fora Bolsonaro!”. 

Arte, manifestação e internet
A rua é o lugar em que a arte afirma sua vitalidade e prescinde da redoma e dos limites dos espaços institucionais. No Faixa Protesta ou no Grupo de Ação, esse lugar é ocupado por cartazes e performances. Mas a hashtag é a faixa da era digital. “Como explicar a Lei Rouanet para quem não assimilou a Lei Áurea?”, indaga uma bandeira postada no Instagram com a hashtag #ColeraAlegria.

“Recusamos a palavra grupo ou coletivo, em prol do termo ação colaborativa. Dessa combinação apreende-se também que não há conceituação a priori e que os sentidos vão sendo constituídos no movimento e na vivência. Todos são autônomos para incitar ações, da forma e com a formação de pessoas que melhor aprazer. Ninguém é representante do #ColeraAlegria”, afirmam os integrantes dessa ação colaborativa de caráter político, hoje composta por um núcleo duro de 17 pessoas, entre artistas, curadores e outros. 

Trata-se mais de um modo de operar do que de um coletivo. A filosofia presente é da coexistência e da integração entre indivíduos e movimentos que compartilham do inconformismo com uma situação de exclusão da arena pública e política. De acordo com o modo proposto, teoricamente, qualquer um pode ser tomado pela emoção da cólera ou da alegria, e manifestar afetos, ideias, gritos, sussurros, sugestões e proposições “sobre as urgências do tempo presente”, por meio de cartazes, bandeiras e estandartes, colocados para circular no espaço público digital, sob a hashtag – que é também a assinatura. Essa abertura dá vazão à participação e à assimilação de novas causas, lutas e modos de pensar, sempre em resposta direta e imediata aos acontecimentos políticos e sociais. 

De natureza diversa e anônima, essa hashtag – que é também movimento – faz o caminho inverso dos atos que nascem na rua e depois se espraiam em imagens nas redes digitais. Mobilizado no final de 2017, diante do levante ultraconservador da última campanha eleitoral presidencial, o #ColeraAlegria nasceu nas redes e começa agora a ganhar campo no mundo físico, seja participando de atos na rua ou de exposições coletivas. Bandeiras integraram as mostras O Que Não É Floresta É Prisão Política (2019-2020), na galeria Reocupa, e Arte Democracia Utopia – Quem Não Luta Tá Morto (2018), no Museu de Arte do Rio, com curadoria de Moacir dos Anjos, além de uma ação junto aos índios guaranis no Pico do Jaraguá, em São Paulo. 

O trânsito entre a rua e os espaços da arte difere o #ColeraAlegria do Faixa Protesta, que nega o espaço institucional, afirmando que as imagens que derivam das frases que eles fazem circular nas manifestações já são, por si só, uma forma de institucionalização. “O trabalho acontece na rua e não vamos pendurar as faixas no museu. As fotografias que circulam disso na imprensa e no Instagram não deixam de ser instituições também, às vezes mais poderosas em seu poder de circulação que os próprios museus”, afirma o grupo. 

Há, porém, casos em que o espaço institucional está mais próximo da rua do que se poderia supor. Na crise deflagrada pelo coronavirus, a Casa do Povo está distribuindo cestas básicas no Bom Retiro, em São Paulo, apoiando-se nas redes pré-existentes do bairro – lideranças de favela, professores de escola pública, entre outras. A fim de representar visualmente e fazer circular a ideia, a equipe recriou uma fotografia do arquivo da instituição, tirada em 1944, que mostra homens, mulheres e crianças realizando um mutirão para enviar insumos aos exilados da Segunda Guerra. Na fotografia de 2020, homens, mulheres e crianças do Bom Retiro se distribuem sobre o diagrama da obra Faça Você Mesmo: Território Liberdade (1968), de Antonio Dias, impresso no chão de uma das salas da instituição. Surpreendentemente, os esquemas gráficos da obra remetem às marcações em giz no asfalto das ruas, indicando o afastamento corporal preventivo. 

Arte e rua instauram espaços simbólicos de invento e liberdade. Nos espaços tradicionais da arte ou nas ruas, as imagens que circulam na internet não apenas documentam, mas transformam o imaginário político, modelam a adesão ou a crítica à atual situação. Sabemos que no rastreamento de dados, nas fake news e nos algoritmos estão as mais eficientes e perversas formas de controle e manipulação social atualmente. Para além das imagens e informações que turvam a compreensão da realidade, a arte produz “contraimagens” que abrem horizontes mais democráticos e progressistas.